PAPEIS

Maria Ângela chegou sorridente. Ela sempre chega assim. É alto astral, tal qual um nascer do dia depois de uma noite chuvosa e avassaladora. Naquele dia o frio estava intenso. Havia chovido lentamente, aquela chuvinha gostosa que cai serenamente, acompanhada de um ventinho que fica batendo naquele vidro meio solto da janela, quase ecoando uma canção de ninar em nossos ouvidos ansiosos pela chegada do novo dia e das surpresas que ele nos proporcionará. As estrelas invisíveis nos negam nessas noites o brilho vital e seu bailar no infinito escuro da noite, mas permitem a canção da chuva, que acalenta corações preocupados.

Na portaria do hospital, Ângela presenteia a todos com seu sorriso inebriante e prolongado, sempre a cumprimentar todos que ali estão. Pouco se importa com suas dores e suas agonias pessoais. Tenta esquecê-las e tenta animar seus colegas que lutam contra um câncer em algum lugar do seu corpo, que lhes suga aos poucos a vitalidade física, que lhes retira a esperança e alegria. Ela, ao contrário fortaleceu-se com seus tumores e aprendeu a sorrir, enquanto muitos ainda estão no estágio da dor. Ela entendeu que não adianta mesmo entregar o corpo, porque com ele entregue, a alma segue igual caminho. E alma não tem dor, não se pode permitir sofrer, não se pode nunca deixar ser abatida. Ângela nasceu para o alto e nasceu para iluminar a todos.

Ela tem cabelos pretos (ainda curtos), depois das quedas provocadas pelas quimioterapias tantas. Cresceu, entretanto sua vivacidade de alma, generosa, e sua alegria e entusiasmo a fez superar as várias crises e dores, e seu cabelo cresce na mesma proporção que sua felicidade. Tem estatura mediana, olhos castanhos, e já apresenta alguns quilinhos a mais do que sua estrutura física deveria ostentar. Sempre com roupas coloridas e com uma suave fragrância, ela chega e impõe seu otimismo. Muitos sorriem quando ela chega. Ela é um sol que ilumina aquele ambiente inebriado das trevas dolorosas do tratamento quase sempre sofrível.

Igualmente a todos, ela traz um grande envelope com seus papéis. São tantos exames, fichas, agendamentos, lembretes, dietas, raios x... É uma vida que se lê nas entrelinhas das tantas palavras complexas que escapam aos nossos olhos desacostumados com nomes estranhos, mas que pelos médicos são traços curtos de significância prolongada e reveladores de segredos que muitos não ousam repetir. Há aqueles que mesmo se negam a ouvir. E assim, dentro do hospital os papéis ditam nossos comportamentos, regulam nossa vida e abrem ou fecham espaços. Na prancheta da enfermeira, os medicamentos, em cada leito, as informações que todos os que ali trabalham precisam conhecer.

Papéis. Muitos de nós nos tornamos apenas isso. Papéis trágicos que nos tornam infelizes, nos fazem chorar e se emocionar. Papéis que nos descrevem como seres humanos a serem tratados de forma diferente. São eles o raio x de nossos corpos e podem também o ser de nossas almas. A lição de Maria Ângela evidencia também que seus papéis, tal qual os dos outros, podem também descrever nossas almas, podem também ditar regras para nosso bem viver e compreender que a vida não pode ser subjugada a um simples formulário ou a uma simples receita médica, que nos impõe duros castigos para o corpo, mas que paradoxalmente podem nos trazer alívio na alma aflita e desassossegada de nosso próprio existir.

Se você buscar, haverá uma Ângela dentro de cada um de nós. Basta que nossos papeis tornem-se também reveladores de nossas almas, e não simplesmente espaço onde nossas dores e aflições sejam registradas. Cada envelope é uma vida, e nele há espaço para todos os tipos de sentimentos. Experimente colocar a mão no seu envelope, e como num sorteio retirar dele o alívio para os conflitos, para as dores, mesmo quando estas são intensas e nos sufocam. Talvez esteja neles a resposta para tudo.

Você não tem envelope? Crie o seu, antes que o façam por você.

PS. Feito na sala de espera da quimioterapia do Hosp. Câncer de Divinópolis.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 25/07/2011
Reeditado em 25/07/2011
Código do texto: T3118536
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