PÔR DO SOL
Minha mãe era prostituta, francesa, chegara ao Brasil de navio, fiquei sabendo desse fato anos depois. Minha pele branca, cabelos loiros e olhos azuis, atraia atenção de muitas pessoas, mas ela abandonou-me na estação de trem no Rio de Janeiro. Fui acolhida pôr uma família desestruturada e levada para uma favela. Fui criada como menino, mas muito maltratada pôr essa família. A mulher que aprendi a chamar de mãe bebia muito e de tempos em tempos arranjava um novo marido. E como minha roupa era dos dois filhos dela, com o passar dos anos, passei a até a acreditar que era um menino. Ela cortava meus cabelos rentes na cabeça pôr causa dos piolhos. Os maus tratos eram terríveis, quando ela estava bêbada, ninguém podia falar dentro do barraco, no menor gesto que fazia, era motivo de surras. E no choro abafado, planejava uma fuga, mas não via uma chance. Eu estava com quatorze anos, era magrinha, acho que até meus irmãos nem lembravam que era uma menina, pois me chamavam de Lil, um nome indefinido. Foi numa tarde de inverno, estava tomando café, minha mãe repartia o pão com meus dois irmãos, quando entornei o café no chão, ela já estava bêbada, e aproveitou para espancar-me, e ouvi as palavras que doeram muito mais que a surra, ela dizia em gritos, que me odiava, que se arrependia muito de Ter acolhido naquela estação de trem. Chorei muito e planejei uma fuga, fui até a pequena janela do banheiro e pulei barranco abaixo, senti medo, mas a certeza de estar saindo daquele sofrimento, deu-me forças para correr. Mas para meu azar, um homem que vez pôr outra ia lá em casa, vinha ao meu encontro e pegou-me pelos braços, desconfiando de minha intenção. Fui trazida de volta, nessa tarde, apanhei tanto que adormeci de dor. Nutria o desejo de um dia conseguir escapar daquele sofrimento. Foi numa noite, minha mãe estava com um homem na cama, eles estavam bêbados, meu irmão de doze anos, foi até minha cama, e disse baixinho que aquela era a oportunidade de fuga, fiquei assustada, pois ele adivinhara meu pensamento, fui até o banheiro, subi na janela e desci. Era noite, os cachorros latiam ao longe, olhei para trás, ele acenou e fez sinal para que eu corresse. Desci o morro, cruzei pelos caminhos estreitos, aproveitava a sombra de barracos pouco iluminada, sentia no rosto a brisa fresca da noite, e dei uma risada, quando avistei as luzes da cidade, gritei, um grito de liberdade, ainda palpei minhas pernas e costelas, ainda doloridas da ultima surra. Cheguei na rua, os carros passavam iluminando o asfalto achou lindo aquele movimento tão tarde da noite. Caminhei o mais que pude, temia que ela pudesse achar-me. Adormeci na calçada de uma loja. Quando amanheceu, continuei a andar, fui atraída pôr uma multidão, e segui, quando percebi, estava no porto e um grande navio ancorado.
Fui caminhando até a rampa, facilmente cheguei até o navio, os turistas tinham desembarcado, e procurei esconder-me naquele imenso navio. Passei horas no mesmo local, quando entardeceu, ouvi vários apitos, venci a fome e a curiosidade de sair dali, percebi que estava navegando, mas fiquei dominando a fome a sede, até que anoiteceu e sai a procura de algo pra comer.
Em um corredor imenso, encontrei uns trabalhadores que me abordaram, falei a verdade, que fugira de minha casa, e implorei que deixassem prosseguir viagem. Para minha sorte, consegui acolhida, eles pensavam que eu era um rapaz, apesar de minha magreza, atingira uma grande altura. Consegui um trabalho no navio, limpava as mesas do refeitório. Arranjaram um uniforme e um boné.
Foi no jantar, quando comecei a limpar as mesas, ainda ficara uns passageiros conversando, notei que o comandante olhava-me muito, senti vergonha e abaixei os olhos. Nunca tinha sido olhada daquele jeito, e ele ao notar meu gesto de timidez, virou imediatamente para outro lado. Sua namorada também me olhou, foi uma mistura de medo e vergonha. Quando acabou minha tarefa, fui para o quarto. Fiquei lembrando daquele olhar, dei um sorriso de menina. No outro dia, na hora do almoço, tentei puxar uns fiapos de cabelo para o rosto, tentativos em vão, meus cabelos eram rentes na cabeça. Balancei os ombros e fui para minha tarefa. Lá estava o comandante, nossos olhos se encontraram. A namorada, sem entender, fazia charme pra mm. Era uma confusão. Uma noite, desci para um salão onde se concentravam as pessoas mais humildes daquele navio, a terceira classe, estava assistindo os casais dançando, quando olhei para a escada, no alto estava o comandante. Ele virou-se rapidamente e foi embora. Senti o coração disparar. Subi as escadas, queria vê-lo, Mas não o encontrei. Fui até a varanda do navio, fiquei olhando a noite, as estrelas brilhavam, o navio seguia o rastro imenso iluminado da lua. Longe, ouvia uma musica de Caetano Veloso “... há de apagar, uma estrela no céu, toda vez que ocê chorar...” alguém se encostou à varanda, olhei, meu coração disparou, lá estava o comandante do navio. Em seu rosto notei indiferença, fechou numa expressão de ódio e disfarce. Fiquei olhando-o, nesse instante ele aproximou-se e perguntou meu nome, respondi de cabeça baixa: Lil. Ele balançou a cabeça, aproximou-se de mim, confuso, perguntou de eu tinha alguma irmã, respondi que não, ele disse em palavras desconexas que amara uma moça muito parecida comigo. Senti uma grande decepção, fui embora.
Nos dias que seguiram, procurava seu olhar, mas ele sempre desviava, sentia que um grande amor nos atraia, mas ele lutava contra, Uma tarde, quando ainda limpava o refeitório, ouvi seus passos, o comandante aproximou-se de mim e disse, que o navio atracaria naquela noite, e que eu deveria desembarcar. Olhei assustada para seu rosto, correu uma lágrima, olhei implorando que ele mudasse a ordem, mas ele olhou para o outro lado, confuso, virou a costa e saiu, quando chegou na porta, parou sem olhar, esperei que ele voltasse, mas saiu fechando a porta. Chorei, chorei muito, senti dores nas costelas e nas pernas, era uma surra que doía a alma.
A noite foi chegando, ouvi o apito triste do navio, estava pronta para descer, o navio atracou, ainda esperei uma mudança na ordem, mas veio um marinheiro e firmou a ordem, com um envelope de pagamento Desci a rampa, misturada à multidão, estava em Portugal, parei e olhei para o navio. Fiquei ali sentada no chão. As horas passaram, levantei e caminhei lentamente pela cidade, Sentei numa praça, perto do cais. Chorei uma tristeza confusa, não entendia o porque daquela atitude. Acordei com o apito do navio, levantei assuada, corri até a beira do cais, as luzes do navio em contraste com a luz do amanhecer, fazia o navio parecer uma caixa de cristal. Corri até a rampa, mas fui impedida pôr um segurança, o navio foi se afastando lentamente, apitando tristemente. Os dias passaram, consegui um emprego num restaurante perto do cais. Todas as vezes que atracava um navio, corria para ver se era o dele, mas para meu azar, não guardara o nome do navio. Os anos se passaram, continuava a usar roupas masculinas, e todos pensavam que eu era um rapaz. Cheguei a tirar documentos, como não sabia meu sobrenome, inventei. Nutria aquele amor passageiro, nutria a indignação de Ter sido retirada do navio de meu grande amor. Foi numa tarde de verão, estava trabalhando, quando chegou um grupo de pessoas, trabalhava como garçom, fui até a mesa, com o cardápio, tomei um susto ao deparar com aquele rosto que não saia de minha lembrança, ficamos nos olhando, perplexos, entreguei o cardápio, minhas mãos trêmulas, o comandante pegou e fingiu não me reconhecer. Era uma alegria misturada com surpresa, uma vontade de falar algo, mas o silencio foi mais forte. Quando eles terminaram de almoçar, levei a conta, ele tornou a perguntar meu nome, respondi: Lilian.
Notei embaraço em seu rosto. Agradeceu e saiu juntamente com o pessoal.
À noite pedi dispensa do trabalho, fui até o cais, lá estava o navio. Senti vontade de subir a rampa, mas tinha segurança.
Pedi para falar com o comandante, disse que o conhecia, aguardei alguns longos minutos, quando permitiram. Fui conduzida até sua cabina, ele estava sozinho, silenciamos nos olhando, de repente ele perguntou fingindo indiferença o que eu desejava, respondi que queria ficar no navio, ele sorriu e disse que não entendia meu pedido, falei que o amava, ele olhou-me serio e ordenou-me que saísse de sua cabina, segurei sua mão, ele retirou dizendo que não era homossexual, que não gostava de homem. Olhei para ele, uma gargalhada escapou de minha boca, uma alegria, descobri minha ingenuidade, fui aproximando-me, ele recuou, então parei e disse que eu era mulher. Expliquei em poucas palavras minha vida. Fui abraçada pôr meu grande amor, sorrimos ele pediu uma prova, tirei parte de minha roupa. Viajamos juntos. Em noites de lua e céu estrelado, íamos até a varanda do navio e a brisa era testemunha de nosso amor.
Casamos não tivemos filhos. Voltei para o Brasil. Ele prometera pesquisar minha vida, viajando para França, enviou documentos sobre minha mãe, fiquei sabendo de sua história, havia morrido logo que chegara lá.
Uma noite, o céu estrelado, no mar a lua iluminava as ondas, da janela de meu quarto, senti uma sensação de medo ao ouvir o noticiário na TV. Que uma forte tempestade ao norte da França afundara o navio PÔR DO SOL.
Chorei, senti fortes dores nas costelas, nas pernas e na alma.
26-03-2001.
Lira vargas,