Peça Divina
Ele escolheu o caminho mais difícil. Sabia como tudo ia acabar desde o começo, já esperava tudo de ruim que havia lhe acontecido, mesmo assim escolheu o caminho mais difícil, por que foi o caminho que ele quis. Também sabia que o meio mais fácil nunca é o certo. Nunca. Odiava generalizar, mas não havia alternativa quando se tratava de certo e errado. Certo é certo, errado é errado.
Agora estava em pé frente aquele abismo. Sozinho. Não podia se mover, pois estava justamente na beirada dele e era uma beirada sem boa sustentação. A cada suspiro podia ouvir como se a terra remoesse um pouco mais até o momento que aquela beirada despencasse.
Estava sentado havia alguns minutos. Já nem sabia quanto tempo tinha ficado em pé até as pernas cansarem enquanto observava aquele abismo impetuoso. Sentar-se nunca tinha sido algo tão trabalhoso e o deixara mais cansado do que antes quando estava de pé. Teve que forçar seus músculos para agüentar cada movimento sutil e delicado de suas pernas, braços e corpo, tudo por medo de cair da beirada. Nunca havia percebido como era difícil ser delicado.
Agora estava com os joelhos dobrados, pernas contra o corpo enlaçadas pelos braços trêmulos. Encolhia-se como um feto que não quer sair de sua casa para descobrir o mundo.
Não conseguia ficar muito tempo sem olhar para o abismo por que sabia que se não o observasse cairia nele, mas também não poderia fitá-lo sempre, pois se o conhecesse se tornaria parte dele. Além de tudo devia tomar cuidado com a beirada traiçoeira.
O céu ao menos era azul e puro, lindo. Sem nuvens, sol, lua ou estrelas, apenas azul. “Se fosse escuro como o mar...” pensava às vezes enquanto o olhava quando não encarava seu atual rival. A única coisa estranha eram alguns riscos tortos no céu que o faziam parecer vidro trincado, mas eram poucos e não estragavam a beleza.
Era bom se tranqüilizar naquele mar de nada, e às vezes conseguia se lembrar de quem era, de que teve um amigo, melhor amigo. Talvez conseguisse lembrar o nome com esforço... “S? M? G? Qual era mesmo a inicial?”, não conseguia. Na verdade nem tinha certeza se era um homem ou uma mulher. “Será que era algo mais além de uma amizade?”, então reparou que quanto mais sua mente se elucidava, maiores os riscos do céu se tornavam. Era como um gigantesco painel de vidro que trincava aos poucos, mas só quando ele se lembrava.
Precisava esquecer e para isso voltava a encarar o abismo. Baixava a cabeça para olhá-lo, apreciá-lo, sublimá-lo... Desconfortável pela posição se remexeu um pouco na beirada e ouviu novamente o barulho da ameaçadora terra deslizar mais milímetros, ignorou se concentrando no abismo.
À medida que o encarava sentia como se um enorme buraco estivesse crescendo dentro de seu peito e aquilo era bom ao mesmo tempo em que ruim. Precisava olhá-lo, precisava deixar se tornar nada e pertencer ao abismo, mas não queria isso. Quando aquela escuridão interna se tornava quase incontrolável ele fechava os olhos e a admirava por alguns segundos, depois lutava para reprimi-la o máximo que pudesse. Nunca conseguia eliminá-la por completo, sempre sobrava um vestígio nos cantos mais estreitos. Por fim tornava a olhar o céu trincado, sem alternativas.
E o jogo recomeçava...
Dessa vez parou e analisou sua própria situação com o máximo de calma possível. O céu prestes a despencar, o abismo insaciável que almejava lhe engolir, a beirada estreita que impedia seus movimentos, sua mente destruída pelo abismo e pelo céu, seu corpo desgastado pela beirada e seu coração... Dilacerado pela vida que não mais tinha.
Uma lágrima correu e quando chegou perto da boca ele a tragou com um “slurp” de sua língua. Era uma velha mania e aquilo começou a lhe trazer lembranças, mas ele não podia lembrar. Baixou seus olhos novamente para o abismo e continuou com o jogo que o destino não lhe propôs como um amigo, mas lhe impôs como um ditador.
Infelizmente a única coisa que podia se lembrar sem trincar o céu é que ele só podia esperar. Não sabia pelo quê, sabia apenas que qualquer espera era em vão.