O Nascimento da Morte
Entre todas as ruas de ouro, campos, colinas e vales, águas doces e cristalinas, nada estava mais impregnado do que o aroma da traição. Ele era podre e nefasto, e havia manchado a harmonia das poderosas hostes angelicais. Em todo o universo, ressoava o grito enfurecido de um Querubim derrotado, surrado pelo próprio irmão e expulso pelo Pai.
Da janela de seu magnífico palácio, o Príncipe Miguel fitava os infinitos horizontes do Paraíso, reportando sua mente ao inolvidável embate contra um terço de seus semelhantes. Joel, leal e devotado anjo de baixa hierarquia, aproximou-se do Arcanjo e rompeu seu silêncio solitário:
- Alteza, o Todo-Poderoso mandou chamá-lo à Sua Presença.
- Obrigado, Joel, irei imediatamente. – respondeu Miguel.
Após sobrevoar boa parte do Céu, o general celeste adentrou a Sala do Trono e, potente como trovão, lhe veio a voz de Deus, preenchendo o lugar:
- Príncipe, para todos o ato de Lúcifer foi repugnante, e sei que nenhum dos Meus servos esperava tal traição. No entanto, a falha de uns é a ocasião para o louvor de outros e, por isso, quero saber sobre tua lealdade.
- Augusto Senhor, tu a sabes mui bem... – afirmava o Arcanjo, antes de ser interrompido.
- Não a quero com palavras, Miguel. Quero que tu a mantenhas com atos, como o que fizeste na queda de Lúcifer. - avisou o Criador.
Confuso, o Príncipe curvou-se aos pés de Deus e ouviu a seguinte ordem:
- Desça à terra e leve consigo dois querubins munidos com espadas do puro fogo celestial.
- Que seja feita a Sua Vontade, meu Senhor! - acatou o grande servo.
Miguel, então, deixou a Sala do Trono e dirigiu-se às mais altas colinas do Paraíso, ao sul. Lá chegando, avistou um verdejante vale banhado por um rio de águas límpidas e, passeando no meio deles, estavam Adriel e Eliaquim, dois dos mais poderosos querubins.
- Vem pela Assembleia? - indagou Adriel.
- Ou é Deus é quem te determina, General? - perguntou Eliaquim.
- Tenho para vós missão do Altíssimo. - Miguel falou.
Resplandecendo um caleidoscópio de cores que a envolvia, a gloriosa dupla aproximou-se do Príncipe Angelical, pairando sobre a relva.
- Vamos à terra. - anuncia o Arcanjo.
- Para que vamos? - dizem em uníssono.
- Aquele que Era, É e há de Vir o sabe; somente Ele o sabe. – pausou ele, sentindo o Vento Divino tocar-lhe os dourados cabelos – Tomem vossas espadas e vamos à terra! - fala o Chefe dos Anjos.
Como um raio, o trio celeste rompe a barreira do som e subjuga a velocidade de luz, chegando ao plano terreno em alguns segundos. Tudo parecia em irretocável paz, até que uma luz colossal veio de encontro a eles. Por entre a cortina reluzente, surge um rosto muito conhecido...
- Bismillah, senhores! Como estão passando lá no Paraíso?! - zomba Lúcifer.
- Que fazes aqui, Satã? - indaga-lhe Eliaquim.
- Ora, para que tanta ofensa contra mim?! Dá-lhes bons modos, Miguel! - escarnece o rebelde, antes de gargalhar.
- És nosso inimigo agora. O Querubim não ofendeu-te, apenas chamou-te por teu novo nome! - rebate o Arcanjo.
Nesse instante, Lúcifer tenta se aproximar de Adriel, percebendo o constrangimento do mesmo em estar de frente com ele. Suas pupilas, da cor do rubi, dilataram, buscando contato hipnótico com os olhos do Querubim. Vendo a artimanha, Miguel desembainhou sua espada flamejante e bradou:
- Afaste-se! Que o Senhor te repreenda!
A visão da lâmina angelical perturba o Chefe da Rebelião Celestial, que leva as mãos ao rosto, como se estivesse com os olhos queimando. Adriel, ainda confuso e atordoado, ordena que Satanás desapareça. Parcialmente debilitado pela ação do Chefe dos Anjos, Lúcifer alça vôo para longe, gritando:
- Maldito sejas, General! Mas saiba que tudo está no começo, e eu digo em meu coração: subirei ao céu, acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono, e no monte da congregação me assentarei, da banda dos lados do norte. Subirei acima das mais altas nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo!
Quando o último feixe de luz do inimigo some no ar, o Arcanjo ouve, em sua mente, um comando do Criador: “Vão ao Jardim, onde lá deixarás os querubins”. Deslizando pelas asas do vento que soprava do norte, Adriel, Miguel e Eliaquim chegaram às portas do Jardim do Éden, onde a presença do Rei do Universo era plena, da mesma forma que era no Céu. Por entre as frondosas figueiras, na entrada do Paraíso terrestre, o Príncipe Celestial vê refletida a luz do sol entre os dedos da mão direita de Eva. Aproximando-se mais, porém, ele conclui que o reflexo vinha de outra coisa: um fruto. Instantes depois e os dentes da mulher arrancam do pomo um belo pedaço.
Sombras, escuridão. A visão do Arcanjo se escurece e uma imensurável explosão, de milésimos de segundo, invade seus ouvidos e o deixa paralisado. Os querubins, pasmos, têm a visão de um raio que parte a terra em duas, enquanto o solo sangra. Atordoado, o trio ainda vê Adão morder o outro lado do fruto da Árvore da Vida, enquanto a serpente, enrolada em seu tronco, exultava em gargalhadas. É quando uma brisa, espalhando o suave aroma das jasmins, envolve o lugar; Deus, o Todo-Poderoso, havia chegado.
- Onde você está? - perguntou Ele ao homem.
- Ouvi a Tua voz no jardim e tive medo, porque estava nu; e escondi-me. - respondeu-Lhe.
- Quem te mostrou que estavas nu? Comeste da árvore de que te ordenei que não comesses? - indagou o Senhor.
Enquanto o diálogo se seguia, Miguel percebeu que as três espadas que portavam, repentinamente, ganharam multiplicação de luz e fogo e, por isso, eles as empunharam, como se preparados para uma peleja. Foi, então, que o Altíssimo lhes ordenou:
- Adriel e Eliaquim, assim que o homem e a mulher deixarem o Jardim, vós devereis guardá-lo, com o poder e a glória que vos dei.
- Que seja feita a Sua Vontade, meu Senhor! - curvaram-se os querubins, e responderam em uníssono.
- Miguel, acompanhe Adão e Eva até seu novo lar. - ordenou Ele.
Dadas as punições ao casal e a Lúcifer, o trio se separou, para executar o que Deus havia mandado: a dupla de querubins pôs-se protegendo o Éden e, em especial, Árvore da Vida, em virtude da qual os primeiros seres humanos conceberam o pecado original; enquanto o Arcanjo escoltou o casal até uma gruta perto dali, onde recomeçariam suas vidas fora do Paraíso terreno.
Como ocorreria tempos depois, novamente, no episódio da tentação de Jó, o Santo Criador convocou todos os servidores celestiais para uma magna reunião. No meio deles, veio Lúcifer, na aparência gloriosa da qual se vangloriava antes da queda.
- Saudações do Sheol, Mui Absoluto Jah! - bradou Satanás.
- De onde vens? - indagou o Pai da Eternidade.
- Estava dando uma volta, por aqui e por ali... Aliás, ótimas companhias são os Teus filhos lá da terra, pois, além de prosear, até comeram comigo! - debochou o rebelde.
- Tudo sei, pois Eu Sou Quem Sou! Vinde e aproxima-te. - ordenou Ele.
Em frente ao Trono onde estava assentado, Jeová fez brotar uma alta e larga coluna de fogo, que girava como um redemoinho, ampliando a luz presente do local. Dentre as chamas, começaram a surgir olhos, boca, cabelos negros como a noite... Até que, ao mesmo que tempo em que as línguas flamejantes se dissipavam e sumiam, apareceu, por completo, uma belíssima mulher. De pele branca e levemente bronzeada, olhos negros como as horas noturnas e em um longo vestido preto e brilhoso, ela curvou-se diante do Trono e disse:
- Eis-me aqui ao Vosso dispor, Majestoso Deus, Criador dos Céus e da Terra!
Apontando Sua destra para Lúcifer, o Senhor dos Senhores falou:
- Este será vosso guia pela terra. A ele, seguirás, mas a Mim prestarás conta nos fim dos tempos. Teu nome é MORTE e ninguém pode vencê-la.
Surpreso, mas radiante, Satanás tomou a dama pela mão e, em seguida, deixaram a convenção celeste. Ao final do evento, Deus assentou-se no cume da mais alta de todas as montanhas do Paraíso e exclamou:
- Temos longo caminho pela frente, Filho Meu. Tudo o que escrevemos, agora, acontecerá!
- Irei pairar sobre os tempos, assim como fiz sobre a face das águas. – disse o Santo Espírito.
Olhando no fundo de Seus olhos, o Pai falou ao Filho:
- E a Ti, Filho em quem me comprazo, caberá descer a eles.
- Sim, Meu Amado Pai. A Mim cabe o maior dos sacrifícios! - pausou, emocionado – Eu os amo... antes de seus ossos se formarem no ventre de suas mães, eu os amo com todo o Meu Ser. Nós os fizemos conforme Nossa imagem e de acordo com a Nossa semelhança, e para Nós voltarão! E o sangue que lhes corre nas veias será o Meu também, e o Meu sangue voltará a eles como vitória sobre aquela que não se pode vencer!
No mais doce e perfeito dos assovios, Elohim chamou Miguel ao alto da montanha. O Príncipe dos Anjos prostrou-se e recebeu a seguinte ordem:
- Traga Gabriel até aqui. Dar-te-emos um plano.
- Perdoai minha insolência, Altíssimo, mas que plano? - indagou o General Celestial.
- Não há insolência na tua questão, Miguel, pois dele também participarás. É o “plano da salvação”. - explicou Ele.
Andando ao derredor de Adão e Eva, procurando maneiras de tragá-los, o Diabo ressabiou-se e perguntou à sua companheira macabra:
- Ouça, Jeová disse que ninguém pode vencer-te... Mas se eu sou teu mestre, por acaso não tenho poderes sobre ti?
Como ardilosa e perversa criatura que é, a Morte sorriu sadicamente, esvoaçou os cabelos ao vento e lhe respondeu:
- Meu Mestre é o Todo-Poderoso. Tu és tão somente meu guia terreno. E, a propósito, no fim de tudo, tu irás comigo também!!!
Assustado como raramente se vira, Satanás resmungou algumas palavras de repúdio antes de ser interrompido pela “donzela maligna”:
- Silêncio! Preste atenção no ventre da mulher: está grávida! Venha, vamos nos aproximar, pois tenho grandes designos para o menino...
FIM
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