Linhas tortas e finitas
Três horas e cinquenta e cinco minutos, nove de junho. Desolação. São poucas as lembranças: uma luz branca e forte vinda diretamente ao meu rosto – “verifique os batimentos cardíacos”, “o desfibrilador, rápido”. Adormeci.
Tivesse eu pensado antes de olhar para o lado esquerdo, dois ou três metros de distância, três segundos em passos largos e menos de um minuto para conhecer a senhora morte. Cinquenta e dois anos, não publicava um livro há mais de meses, pouco escrevia ou me encontrava sóbrio; manco de umas das pernas, um pulmão feito bucha vegetal, rígido – fato que dificulta a entrada de ar que foi causado pelos dois maços de cigarro ao dia há vinte e dois anos e fígado ferido pela bebida. Eu nunca fui o modelo-exemplo a se seguir. Uns diziam estar morto e outros diziam estar esperando a morte, e talvez estivesse. Todos estão, mas alguns – como eu – aproveitam pouco mais os marginais, e outros dão preferência às boas ações, esperando que a morte tenha certa piedade. Com minha pupila dilatada, finalmente estou enxergando o que toda a falsa claridade mundana não me deixava ver. Nasci – nascemos – meio a sujeira, a imundice, onde os tronos são da mentira, em que pessoas sentem-se mais acessíveis à morte do que a um atendimento em hospital, em que famosas e antigas brigas de punho, hoje terminam com facas, tiros; em que a guerra está presente o tempo todo e só quem possui o poder sai ileso. Iniciou-se assim, e finalizará assim – apenas pensamentos. Desde sempre, ou quase sempre, tenho vivido meio a tanta insanidade, e putas, puteiros, bares e bordeis não me assustam ou afligem, tornaram-se mais presentes nos meus dias do que um lar-doce-lar, e pessoas me olham e me miram e me apontam “velho grotesco”, mas, o que é que se pode fazer quanto tudo o que você tem são palavras a serem escritas e talvez, um dia, reconhecidas? Fora isso, lá fora, o resto é inferno e ilusão e a lei da sobrevivência será sempre a mesma, o mais forte se alimenta do mais fraco, o vício continua. A senhora morte pouco tempo atrás quis a toda e qualquer circunstância o velho Alexander presenteando-o com uma parada cardíaca. Ela trajava-se com um belo e longo vestido, as costas despidas por um decote “v” que alcançava o fim da mesma, longos fios negros caiam pela pele branca, havia um charme burlesco e meus olhos estavam caminhando por cada curva e relevo visto, marcados pelo tecido vermelho até seus pés, era terrivelmente sedutora a um velho como eu, parecia uma ótima opção encontrar-me com ela naquele momento, mas como diria um bom e velho companheiro, “eles podem ter conquistado Deus, mas Chinaski recebe seus conselhos do diabo.” Alexander também. Acordei. “Os batimentos retomaram seu ritmo”, “ele acordou”. Por um minuto via-me arrependido de tanta loucura, mas apenas por um minuto. Fosse eu o diabo em forma humana, fosse você o diabo em forma humana, todos têm linhas tortas e finitas, pouco ou muito tortas, todos têm. Boa ou não, a essência te faz único. Contudo, não importa o tempo que tenha. O que importa é o que fará dele. Ainda que não cultive a filantropia, o arrependimento vez ou outra irá surgir, mas que seja pelo que fiz.