EXERCÍCIO FINAL
Ele já sabia. Ninguém consegue se esconder por tanto tempo assim, da mesma forma que ninguém é tão ingênuo assim. Mauro já havia notado o comportamento diferente de sua esposa há alguns meses. Ultimamente o sorriso quase sempre inevitável com sua chegada do trabalho estava desaparecido. Ela passou a cultivar flores no jardim que antes ficava cheio de mato. Ela passou a se cuidar melhor. Ele não entendia bem o comportamento da esposa, mas viu-se de repente com um tratamento (in)diferente por parte dela. Os filhos estavam sempre menos bem cuidados que o de costume e até mesmo aquilo que ela fazia com carinho para o pequeno Bruno, de três anos e para a princesinha Priscila, estavam deixando a desejar.
Mauro é representante comercial. Tem um carro razoável e utiliza-o no trabalho cotidianamente. Apesar de não ter muitos horários fixos, Sandra sabe que quando ele viaja não retorna tão logo. E ela sempre sabe quando ele viaja. A vida dos dois estava beirando ao caos. Quando ele chegava em casa, ele ainda insistia num boa tarde ou algo assim, que era apenas correspondido por um seco “tá”. Os diálogos entre ambos, quando se encontravam eram assim, em média:
__ Oi, tudo bem?
__ Tá sim.
__ Alguma novidade?
__ Chegou a conta de luz.
__ Quanto é?
__ Cento e oito reais, vence na segunda.
__ Ok.
__ Vai viajar que dia agora?
__ Depois de amanhã.
__ Pra onde? Quantos dias?
__ Pra Belo Horizonte, uns três dias ou quatro.
__ A tá.
Assim, simplesmente o óbvio. Beijos ficam para os filhos. Mauro já nem se incomodava mais. Viajava e ocupava seu tempo com o trabalho. Nos dias fatídicos em que ficavam em casa, ele passava horas no seu computador fazendo contas e planos. Deixava o dinheiro e Sandra quase nunca ficava em casa. Era um tal de ter que ir trabalhar fora do horário (ela era manicure). Ajudante de, na verdade. Passava algumas horas no salão de uma amiga onde fazia pé e mão. E claro, conversava com todo mundo. Foi lá que conheceu Edivânia, e depois, Humberto, que não ia ao salão fazer pé e mão, mas deixava a esposa e saía sempre com um flerte para a loira Sandra, que sempre correspondia com um sorriso. Sandra era uma mulher belíssima. Tinha cabelos encaracolados na medida, um corpo definido às custas de academia quatro vezes na semana e de excessivos regimes. Era alta, falava firme, do tipo mulher que se impõe. Seu marido era submisso e calado. Ouvia desaforos dia e noite e realmente era apaixonado pela estrada. Ali ele era apenas um homem livre, sem agressões e sem as constantes reclamações de sua infiel mulher. Na estrada ele era dono de seu destino. Viaja e comanda seu carro que segue o seu caminho tal qual ele deseja. Nada sai do seu controle, e ele vai para onde quer da forma que deseja. Em casa, era senhor de nada, não que eu pense que o homem deve ser autoritário, por favor. Mas convenhamos, ignorar alguém é mata-lo aos poucos, envenená-lo com uma gota diária até que alcance o suficiente para a fatalidade.
Mauro é um homem bem aparentado. Vestia-se modestamente, mas bem. Tinha os cabelos ligeiramente grisalhos e uma cor achocolatada. Não tinha aquele corpo definido, mas não havia nada sobrando ou faltando em demasia. Um homem comum, mas que despertava suspiros por onde passava. Além do mais era calado. Homens calados chamam a atenção das mulheres (é o que elas dizem).
Humberto era do tipo sem vergonha. Sandra não era a única amante daquele dono de um supermercado. Sua esposa fingia não ver nada, pois tinha conforto em casa e não estava disposta a enfrentar a vida. Não se tem notícias de que ela tinha outro homem. Gostava de luxo, vestidos caros e joias. Muitas joias. Humberto frequentava a casa de Sandra sempre que o Mauro estava na estrada. Como empresário, tinha tempo e dinheiro para cuidar de seu corpo e estava em dia. Era jovem, tinha apenas 29 anos. Sandra tinha já seus 42 anos bem vividos e bem cuidados. Mauro, 45.
No salão sempre se falava de traições, de maridos infiéis, de mulheres que se jogam para os homens e coisas desse tipo, que, se você passar quinze minutos num destes ugares vai ouvir certamente. Embora todos soubessem de Sandra, ninguém falava nada.
Naquele dia, houve um grave acidente na estrada para Belo Horizonte. Mauro estava impedido de viajar. Não queria voltar para casa. Queria evitar a indiferença e talvez a surpresa inevitável. Parou na estrada, perto de um bar. Bebeu. Fazia anos que não o fazia. Queria relaxar, deixar extravasar um pouco sua angústia contida no silêncio de sua alma. Voltou para a casa à noite. No bar, conheceu Ednaldo, com uma história bem parecida com a sua. Aliás, são muitas as histórias iguais a essa. Resolveu seguir o conselho do seu amigo.
Chegou em casa por volta das dez da noite. Não tocou a campainha como de costume. Bruno e Priscila estavam na casa da avó, como o pai observou ao entrar no quarto das crianças. Ouviu barulhos. O chuveiro estava ligado e uma música suave era emitido do quarto que ficava no fundo daquela casa. Mauro parou por uns instantes na porta do quarto entreaberta. Ouviu sorrisos. Esperou que a esposa saísse do banho. Não demorou muito. Saiu enrolada numa toalha, sorrindo e cantando, acompanhando o som que vinha do quarto. Mauro mordeu-se de raiva por dentro, pois sentia saudade daquele sorriso e daquela felicidade. Não se conteve diante da embriaguez de sua alma abalada e entrou ferozmente no quarto. Sua surpresa foi absolutamente maior.
Olga correu apressadamente para aquela casa que estava de portas abertas. Ouviu os tiros. Sandra caída no chão, completamente nua. Humberto estava encostado na parede com um tiro na cabeça. Certeiro. Mauro, com os braços abertos, caído no corredor.