AINDA SOMOS SEIS MAS JÁ FOMOS FELIZES - Parte I - cap. VII

O pai era muito corajoso.

Andava pela cidade na sua bicicleta com um caixote de madeira - feito por ele - na garupa, que era pra carregar suas ferramentas.

É que o pai, nessa época, era pedreiro e tinha pá, martelo, prego, prumo, metro, lápis - aquele lápis engraçado, vermelho e quadrado - e mais um tantão de coisa interessante pra carregar no caixote.

Mas, só durante os dias de semana, porque, no final de semana, o caixote carregava outras bugigangas.

Quando a gente saía pra passear, o pai ia no banco, a mãe, muito comportada, ia no cano, e meu irmão muito lindo e eu, íamos no caixote.

Quer saber? Nem a família real jamais sentiu-se mais imponente ou importante que a gente.

A gente ia meio apertado, é verdade, mas era bom demais.

Teve um dia que saiu só o pai, o Tarcísio e eu, e ai, é claro, eu inventei de ir no cano que eu queria imitar a mãe que eu achava uma lindura tão grande que até doía, com aqueles cabelos muito lisos e pretos até a cintura, com aquela pele trigueira, os olhos bem pretos, magra, elegante, a minha mãe!, que até parecia aquela índia muito linda do meu livro de histórias.

O meu cabelo era curtinho, a minha pele era acinzentada, o meu olho era castanho, mas a minha imaginação era comprida, muito comprida mesmo, e eu me "sentia".

E ai, como eu não tinha a classe da mãe, acabei com o pé enfiado e entortado na roda. Uma dor danada de doída! Só não foi pior porque não quebrou, mas, sem gesso, acabei por perder a chance de ser o assunto da rua.

Aí o pai "invocou".

Saiu um dia e voltou sem a bicicleta.

Mas... com uma caminhonete!

Ave Maria!, que agora a gente tinha carro!

Era um carro velho, mas muito divertido.

Não demorou "nadica" e já ganhou um nome dado pela molecada.

Era a "FURRECA DO LEÃO".

E o pai nem aí, e ainda por cima fez foi comprar uma mãozinha

cor-de -rosa que grudava no vidro dando adeusinho. Uma farra enorme! Do jeitinho mesmo do meu pai.

A Furreca só pegava no tranco e vivia dando curto-circuito, um Deus nos acuda. A mãe é quem sempre dava o alarme: "Leão, tá com cheiro de borracha queimada."

Pronto. Era abrir o capô e curtir a fumaceira.

Não sei que fim levou a Furreca. Apenas que um dia o pai chegou com outra caminhonete que não dava tanto trabalho, mas também não divertia tanto.

Depois de um tempo, o pai ainda trocou ela por um caminhão três quartos que pra puxar areia, pedra, etc.

Acabou foi puxando a nossa própria mudança quando o pai teve que vender a casa.

Ainda me lembro da mãe, que quis, ela própria, fechar a porta da casa - como quem fecha um diário dentro de um cofre - me dizendo: "Um dia você vai voltar aqui e vai cantar assim: "...Abri a porta que tuas mãos fecharam, chamei por ti, ninguém respondeu..."

Achei aquilo liiiiiindo!

Eu não tinha nem tamanho nem idade pra alcançar toda a tristeza da mãe.

Nunca mais ela voltou lá.

Nem eu.

Isabel Damasceno
Enviado por Isabel Damasceno em 18/07/2011
Reeditado em 18/09/2019
Código do texto: T3102193
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