MULHER-TOURO

Não era um grande circo, desses que se apregoam como internacionais, com trapezistas russos, animais africanos e anões arreganhados vindos de muito longe. Provavelmente o seu círculo de apresentações não ia além das fronteiras deste estado, tão minguadas que eram suas atuações. Ainda assim, fazia o seu sucesso pelas cidades do interior, que, sem outras opções, mostravam-se curiosas e atentas a qualquer novidade que por ali se anunciava. Pois o tal circo chegou e, sem despertar meu interesse, instalou-se num campo aberto a algumas centenas de metros da casa em que eu morava.

Morava e malhava. A minha grande paixão era o halterofilismo, os exercícios de musculação, que começaram devagar nas aulas de educação física no colégio e depois se tornaram a rotina de meu dia-a-dia. Com pouco mais de vinte anos, eu era forte e atlético como nenhum outro rapagão das redondezas. Meus amigos eram muitos, mas não praticavam esportes radicais e pesados, e qualquer conversa sobre mim girava sempre em torno de minha aparência física, que a todos parecia causar admiração, e mesmo inveja.

Instalado o circo, pronto para o início de suas apresentações, logo correu a notícia de que nele havia uma mulher que certamente era a atração principal entre os espetáculos. Chamada de Mulher-Touro, ela desafiava qualquer homem para uma luta corporal na arena, sendo grande o prêmio em dinheiro àquele que a vencesse. Jamais fora derrotada, isto por ser excepcionalmente forte e possante, o que lhe dava confiança suficiente para não temer homem algum. Noutras cidades por onde o circo antes estivera, dizia-se que havia feito verdadeiros estragos nos que a haviam desafiado, ou melhor, aceitado o seu desafio. Quebrou o pescoço de um, os dedos de outro e a cara de muitos mais. Ouvindo esses relatos, convenci-me de que tal pessoa devia mesmo ser a figura em evidência naquele circo.

E a rapaziada do bairro, os que bem me conheciam, imaginando uma comparação de forças, logo sugeriram que eu devia enfrentá-la, para acabar com sua invencibilidade e assim dar maior razão à alta estima que por mim todos nutriam. Perguntavam-me se eu já a havia visto, se estava me preparando para o confronto, e até o que eu pretendia fazer com o dinheiro do prêmio. Ora, eu não tinha a menor vocação para luta livre nem para expor-me numa peleja de circo. Não era de briga e nada entendia de ataque e defesa pessoal. Tentei explicar isso aos três ou quatro que vieram à minha procura, que não entenderam e acabaram indo embora um tanto desapontados.

Mas as circunstâncias despertaram minha curiosidade. Afinal, que supermulher era aquela? Resolvi dar uma saída e rondar o circo, na tentativa de ver a Mulher-Touro. Lá chegando, logo a vi. Estava exercitando-se ao ar livre, erguendo e arremessando pneus de caminhão como se fossem seus oponentes na arena. Os meninos da rua deleitavam-se observando a cena, mas ela ficava só na dela, sem ver e ouvir ninguém. Saí dali já na certeza de que não me caberia enfrentá-la; eu não estava a fim de fazer-me de saco de pancadas e no dia seguinte cair na gozação de todos.

Mas ainda uma ou duas vezes naquela semana vi a mulher de semblante taurino. Deveria ter uns trinta anos e algo mais e, fora a aparência física que qualquer leitor já consegue imaginar, ela tinha o hábito de fumar bastante. Não era cachimbo nem charutos, mas cigarros comuns mesmo, que talvez fizessem o efeito de acalmá-la um pouco. Achei que era uma incongruência o seu apego ao tabagismo, pois era algo que não condizia com sua atividade atlética, com sua condição de lutadora.

Mas o final de semana se aproximava e alguém deveria enfrentá-la, para que o circo encerrasse suas apresentações com chave de ouro. E acabou surgindo um valente, que vivia no meio rural. Era um rapaz de fazenda, acostumado a lidar com búfalos e cavalos bravios e que, pelo que eu sabia, era muito bom de briga. Chamava-se Valério de Oliveira, mas não se vexava em atender pelo apelido de Coice-de-Vaca. Dizia ele que não tinha medo de ninguém, muito menos de uma mulher que de touro não tinha nada.

A cidade alvoroçou-se na expectativa, e eu também não quis perder o espetáculo da luta. No sábado lá estava eu, assistindo às palhaçadas preliminares enquanto a hora esperada não chegava. Por fim, o cenário mudou, esvaziou-se a arena e silenciou a platéia. O organizador do evento fez-se presente, dirigindo-se a todos com estas palavras:

- Senhoras e senhores, neste momento apresentaremos a última atração desta noite. A terrível e sensacional Dorotéia Velasques, mas propriamente conhecida como Mulher-Touro, em confronto com um digno filho desta terra, conhecido por vocês como Valério Coice-de-Vaca. Louvamos a coragem deste rapaz e consideraremos a luta de igual para igual, já que ninguém neste mundo é invencível. Esperamos portanto que o espetáculo agrade a todos, e que vença o melhor.

Entrou a Mulher-Touro de um lado da arena, entrou o Valério Coice-de-Vaca por outro lado. Apareceu um juiz, que era do circo mesmo e se poderia desconfiar que iria favorecer a mulher. Mas tudo bem, a platéia estava ali para ver tudo e julgar qualquer arbitrariedade injusta.

O juiz fez soar seu apito, estava iniciada a luta. O rapaz não esperou um instante sequer e partiu para o ataque, tentando desferir socos no rosto da mulher. Ela nem sentiu nada e derrubou-o com um tapa. Mas ele era cheio de destreza e no segundo seguinte já estava de pé, investindo com fúria sobre sua inimiga. Não esperando uma reação tão rápida, a Mulher-Touro recebeu um tremendo chute na cara. Revidando, acertou no outro um soco que quase o pôs para fora da arena, e veio para cima dele com toda sua massa muscular para esmagá-lo de vez; mas o rapaz desvencilhou-se e deu-lhe outro pontapé, desta vez no estômago da mulher. Com socos e pernadas pra cá e pra lá, a luta parecia justa e equilibrada, enquanto a platéia vibrava. Até que a Mulher-Touro conseguiu agarrar o Valério Coice-de-Vaca de um jeito tal, dando-lhe por trás uma gravata bem aplicada, que parecia ter-se chegado a um impasse. O rapaz tentava livrar-se aplicando-lhe sucessivas cotoveladas com ambos os braços, mas nada conseguia. Sem outra saída, acabou fazendo sinal ao juiz para que a luta parasse; era sua desistência, dava a vitória à Mulher-Touro. Ainda assim, foi muito aplaudido por todos os presentes, que nunca haviam visto luta igual àquela.

No dia seguinte não se falava noutra coisa, senão no espetáculo da noite anterior. E nos dias que se seguiram muitos vieram a mim, condenando-me pela falta de coragem em enfrentar aquela mulher. O que para mim era prudência, para eles era medo. Eu tivera medo, diziam, medo de perder para uma mulher que não era tão forte como eu. Pareceu-me que a partir daí ninguém mais me admirava, eu não era o super-homem que todos pensavam.

Talvez tivessem razão. Eu mesmo, depois, andei a meditar muito e comecei a perder aquele entusiasmo pela musculação, achando afinal que aquela prática não me levaria longe. Aos poucos fui mudando minhas ideias e por fim transferi-me para a Capital, no intuito de trabalhar e estudar.

Pois bem, passados dois anos, tive um dia a surpresa de encontrar-me com o Valério de Oliveira. Ele largara a vida no campo e também viera para a Capital para trabalhar e estudar. Por sermos oriundos da mesma cidade, conversamos bastante sobre todos os acontecimentos anteriores aos quais estávamos ligados. Por fim falou-me que queria estudar Medicina, mas não levei-o muito a sério, e até lhe disse que ingressar em tal faculdade não seria nada fácil para ele. Mas a verdade é que eu ainda não conhecia a extraordinária determinação daquele rapaz. Despedimo-nos e eu não mais o vi por um longo tempo.

Passados então mais de vinte anos, e tendo eu novamente me encontrado com ele, o Dr. Valério, contou-me um caso que me surpreendeu. Uma noite estava ele de plantão no hospital, quando ali deu entrada uma paciente, amparada por seu irmão. A mulher estava acometida de câncer no pulmão, já estava recebendo tratamento e vinha desta vez com uma forte recaída. Pelo nome, na sua ficha médica, o médico reconheceu-a, lembrou-se dela. Era ela, a Mulher-Touro. Velha e muito magra, mal podendo andar, careca, acabada mesmo, estava no fim. Viera para o hospital pela última vez, pois morreu nas mãos do Dr. Valério, poucos dias depois.

Não cheguei a saber quanto tempo, depois da citada luta, ela ainda ficou naquele circo, nem se foi um dia vencida por alguém. Não perguntei isso ao médico, que também não deve ter perguntado ao seu irmão, que ficou ao seu pé até o fim. Apenas convenci-me de que o cigarro, este sim, derrotou-a, e foi o seu maior inimigo.

Egon Werner
Enviado por Egon Werner em 17/07/2011
Reeditado em 17/07/2011
Código do texto: T3100343
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