Oração da onça preta

“Onça preta cabra preta

Tira esse homem daqui

Ele não sente nada

Só o vazio sem fim”

Dizia as palavras e o medo de perder o amor de Deus, vinha a boca, quase vomitando. Aprendeu a oração mexendo nas coisas de Sandoval Mistério. Que morou em sua casa quando criança e saiu fugido da cidade acusado de magia contra os homens ricos. Foi embora cedo e deixou uma mala secreta, que ninguém teve coragem de abrir durante muito tempo. Até que diante do encosto que era seu marido, não deve duvidas, abriu num dia que a raiva foi maior que o medo de se perder. Entrou no quarto das bagunças e embaixo do penteadeira velha, estava o baú, negro, com quinas metalizadas, flores de lata, pontos de ferrugem. Percebeu a mala, tocou por cima, abriu discreto e leu de pronto o livro de capa de couro cru. Primeira página, rasgada as pontas, pálida. Voltou pra sala, peito tremendo. Foi pra cozinha cuidar da casa. E os versos na cabeça:

“Onça preta cabra preta

Tira esse homem daqui

Ele não sente nada

Só o vazio sem fim”

Entre panelas e temperos lembrava do marido, que não conseguia nem chegar perto. E o traste não queria embora. Dizia que a casa era dele e se percebesse ela se engraçando com outro, mataria o caboclo e ela ia junto. Violento e Desagradável. As palavras já saiam mortas de sua boca. Voltava pra casa de madrugada, cheirando cachaça e puta. Vinha isso na cabeça e falava bem rapidinho comovida com a própria situação..

“Onça preta Onça preta

Tira esse homem daqui

Ele não sente nada

Só o vazio sem fim”

Repetia . Não sabia nada de onças, de vazio e muito menos de homem. O único que viu de perto foi o seu. Que em seu mundo escondido, não era bem o homem que sonhava. Ficava culpada em pensar isso. Afinal, a cidade não tinha tantos assim. Quem tinha o seu, deveria agradecer a Deus, Porque foi mais do que sorte ter conseguido um “Porque tem umas ai, que nem um desse conseguiu”. Ficaram velha e mais feias do que era. Difícil. A única coisa que sabiam de homem era os modelos das folhinhas.

Depois do almoço veio um arrepio que deixou todo seu corpo em tremor. Um prazer melado de voltar no quarto, abrir o baú e ler mais um verso. Pois o primeiro foi de lascar. Abriu muitas lembranças em sua cabeça, homem vazio. Tinha um leve sentido do que falava: vazio. O seu era vazio. Não tinha vontade de estar perto, de abraçar, contar alguma coisa. Nada. O contato entre eles era de madrugada quando chegava. Montava nela como uma animal. Uma puta de casa. Levantava a saia. Quase dormindo, apertava a bunda, afastava a calcinha pro lado. ela fechava os olhos, e parava em lápide. O estrupício montado nela, fungando na nunca com o cheiro que sobrou da noite e dos lugares que foi. Acabava, acendia o cigarro na cama mesmo. Respirando pra dentro com um fole. Não era ele que chegava. Era todos seus malfeitos. Que mesmo depois dele longe “Ficava me azucrinando, me falando

repetidamente o que não entrou na noite. Aquilo que só pode entrar quando entendemos, aceitamos e deixamos de lutar. E todo dia era assim. Uma infinidade de luta, uma coisa atrás da outra, um absurdo que vazia tudo ficar sem graça e triste. Tragava, estragava. Que não lhe fazia sentir gente. De tanto querer, tudo distanciava, pelo tamanho do absurdo. Deixava menos pela imensidão de coisa que não gostava. Precisava aprender gostar e rápido das coisas sujas dele. Ou gostava ou ficava entalada, carregada de uma fumaça de medo que só me fazia ficar pensando merda, sem saber o que estava acontecendo. E nessa distanciamento eu ficava, me culpando por ser tão pobre de coração. De não entender que o homem precisa ser aceito como é, livre, bicho, brabo, cheio de umbigo e com os sentidos em todo lugar, menos em casa, menos no chão.

Essas reflexão lhe encheu de força. No quarto puxou a mala, abriu com força. Parecia já outra mulher. E com voz alta,

Jogue no precipício

Sua cabeça sem vontade

Isso abrirá seu coração

Que é fechado de maldade...

Continuava a ler a oração, que já nem medo dava. Que de tanto saber o que de verdade acontecia, começava a gostar de Sandoval Mistério. Homem de segredos que conhecia a vida. que mostrava nos seus livros perdidos o que de pronto estava na cara. Mas o medo de ver, de se mostrar o que era. Descobriu que Sandoval não era magico, não era diabo. Só sabia das coisas. Acreditava nas coisas que via . E guardava tudo no baú pra quem tivesse coragem de abrir, e achar a revelação. Esses pensamentos perfurou fundo essa coisa de mistério. Gostou do nome do seu amigo da mala. O homem que sabia de tudo. Leu com respirinhos de calor:

Se quer livrar de seu homem

Abra o olho para ver

Não aquele do rosto

Mas o outro de seu ser...

Foi lavar o quintal. Aquelas palavras azucrinando. Conheceu Casimro há muito tempo, casou logo, mesmo sem família gostar. “Ele é uma pau de bosta” falou muito seu pai, em lagrimas da filha se perder com um caboclo que não tinha nem parente nem derente que fosse bom. Comprou uma pequena casa na praça da feira. No começo era até boa a companhia, mas com o passar do tempo, foi ficando nojenta. Aquele homem magro que não mudava nada. Não abria mão do jogo, das putas da rua de santa clara. Não deixava dinheiro pra compras, e a casa era deserta, sem alegria, só o temperamento e raso de Casimiro. Quintal limpo, entrou no quarto. Transformada de entendimento, contente com a sua coragem. Um fogo ainda no peito, medo de não receber o perdão de Deus. conseguiu tirar o livro do Bau. Levantou à luz da Janela . Deu uma olhada pra fora:

Não sabe nada da vida

De-lhe algo pra sentir

Aperte sua garganta

Até o ronco sumir

Se quer a felicidade

Abra mão do seu destino

Aceite o que não tem.

E busque o tempo de menino

Onça preta onça preta

Faça esse homem partir

Afaste ele do mundo

Pra que eu possa existir

Leu isso, encheu o peito de sentimento. Olhou pra fora, viu Casimiro chegando do trabalho. Viu seu andar. Animou com o sol em seu rosto. Parou de frente da casa e mexeu no arbusto. Gostou de ver. Fechou o baú. Guardou tudo. E por um instante lembrou da dificuldade em achar outro homem. Correu pra cozinha e esquentou o almoço. “Tomara que ele me pegue agora a tarde”, pensou suspirando.

Ariano Monteiro
Enviado por Ariano Monteiro em 14/07/2011
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