BASNOTE.

 

 

 

Conto de uma velhinha muito simpática.

 

 

 

 

A tia Custódia era o nosso divertimento favorito, e nós éramos o divertimento dela.

Nela, residia um misto de sabedoria e paciência.

Fazia ferver a água numa frigideira para coar o café mais ligeiro, alegando que com a chaleira a água demoraria mais a ferver e, por conseqüência, o café também demoraria mais a ficar pronto.

As cascas das laranjas eram dependuradas sobre o fogão à lenha, e nos dizia que era para principiar o fogo quando não houvesse  gravetos ou estivesse chovendo.

Por saber desta arte ou descoberta se mostrava sabichona, pois havia aprendido com os seus ancestrais essa arte de combustão natural.

Era a nossa confidente numa juventude cheia de questionamentos, tinha sempre uma palavra simples, mas com muita sabedoria.

Aliás, em termos de sabedoria ela era a própria sábia, sempre se denunciava como uma portadora de conhecimentos antigos, às vezes, um tanto arcaicos, mas que nada ficava devendo aos supostamente instruídos e letrados da época.

Conosco, ela aprendeu a fumar, não tragava, dizia que era para não ficar tonta.

O seu cigarro preferido era o “Marusca”, muito popular na época, com o qual, ela fazia uma bossa de verdadeira artista, projetando de forma exibida umas baforadas de fumaça que ela tanto gostava.

E ficava apreciando o evolar-se da fumaça em chumaços acinzentados, e que mais se pareciam com nuvens ameaçadoras de trovoadas.

Com ela aprendemos a beber uma cachaça com anis de sua própria fabricação, depois de alguns tragos a mais, contávamos as piadas as mais sujas possíveis.

Tia Custódia simplesmente as adorava, nunca houve uma oportunidade em que ela nos repreendesse.

Quando não tínhamos nada para fazer, o nosso programa preferido era visitar a tia Custódia e fazê-la saber das últimas notícias ou fofocas.

Fulano fugiu com a Cicrana, Beltrano brigou com a Fulana, Fulana está dando para o Cicrano, etc, etc, etc.

Hoje, ainda me lembro muito bem do seu café morno.

Naquela época era difícil comprar uma garrafa térmica, pois era muito cara e poucas existiam.

E, quem tinha uma, a guardava com todos os cuidados.

Por isso o café era morno, porque estava sempre sobre o fogão semi-apagado, num boião ou numa chocolateira. (cafeteira)

Era difícil o dia em que tia Custódia não vinha a Imaruí.

A sua presença era obrigatória na missa ou na novena.

Depois dessa função religiosa nós a levávamos para casa, juntamente com a Bebela.

Na época uma prima mais do que cortejada, era com ela que fazíamos os nossos primeiros ensaios lúbricos da adolescência, e ela nos atiçava de sobremaneira ou nós assim imaginávamos.

A tia Custódia tinha uma fisionomia e uma postura que eram inconfundíveis, trajava sempre um vestido preto, (era o luto pelo falecido marido).

Portava sempre um pano também preto a cobrir-lhe a cabeça de cabelos mais do que prateados, as pernas eram bastante arqueadas, mas de uma resistência incrível.

O guarda-chuva era também inseparável.

De tão velho que era já havia perdido a cor original, era russo, bem como a pequena bolsa de mão também preta, que dizia ser a sua buceta com certa malícia.

Ela era muito engraçada, principalmente quando nos contava a história do bicho folharás.

 Na verdade, o causo não tinha graça alguma, ela é que era engraçada quando contava essa história, já há muito repetido, imaginem a senilidade do causo, pois o escutou pela primeira vez por volta de 1910 quando era menina.

Uma história que ela sempre gostava de contar, era a de um casal que tinha duas filhas.

Uma se chamava Maria e outra mais velha, era conhecida pelo nome de Porpiça.

A mãe, quando se referia as suas filhas e aos seus gostos, dizia que: “Maria não gostava de baile, mas Porpiça é louca”.

Sempre à tardinha, quase à boca da noite, ela aparecia com o seu guarda-chuva e com a sua boceta de mão, ia chegando e desejando “Basnote”.  Era a sua saudação peculiar.

Depois desse cumprimento todo especial, sentava-se à mesa e filava um café com broa ou com mãe-benta, e passava a relatar as novidades que havia colhido em seu périplo, quando recolhia todas as informações possíveis com o famoso dedinho de prosa.

Sempre alegre e bem disposta, pois não existia para ela impedimento algum para participar de uma novena ou de uma brincadeira de boi-de-mamão, principalmente de uma noitada de terno de reis que ela não perdia em hipótese alguma.

Quando queria filosofar dentro do seu conhecimento autodidata e por transmissão dos antigos, ela dizia sempre assim: “Olha meu filho, o futuro a Deus pertence” ou, “Nada se sabe do dia de amanhã, então vamos viver o dia de hoje”. Santa sabedoria!

Quando ela vinha a Imaruí, era para participar das funções religiosas ou fazer as compras, a fim de repor o seu estoque de mantimentos, para os quais tinha uma terminologia muito especial.

Como, por exemplo, o arroz, o feijão, a massa, a farinha e etc, ela dizia que era o entulho.

E para a carne, o charque e o peixe e etc, dizia que era o conduto.

Nos seus momentos de uma velha-criança, ela tinha o habito de comprar umas balas, muito popular na época e que vinham acompanhadas de uns bichinhos de plástico.

Tia Custódia era uma contumaz consumidora dessas balas e colecionadora dos ditos bichinhos.

Depois de consumir as balas, colecionava os bichinhos numa taboa e ali os colando, dizia que era o seu potreiro ou a sua fazenda.

Nessa mini propriedade que tinha uma diversidade de bichos, tais como, macacos, porcos, carneiros, cabritos, cavalos, bois, vacas, veados e etc.

Todos viviam em paz e imóveis no potreiro da tia Custódia.

 E a cada um que lhe visitava, mostrava toda orgulhosa o seu tabuleiro-fazenda, depois o guardava com todos os cuidados, para que os bichos não caíssem do seu potreiro imaginário.

Esse era o momento mais lúdico na vida dela, creio eu que, talvez em sua infância não tenha tido a oportunidade de ser criança.

Pois, em sua época, o autoritarismo paterno e materno eram pretextos rígidos, tidos como forma de educação adequada.

Castrando em todos os sentidos os momentos lúdicos de uma criança, impedindo-a de manifestar através da sua inocência os sonhos fascinantes de uma infância.

Nós também passamos por essa fase anacrônica em que, brincar era proibido.

Desde a infância já nos era introjetado o sentido de apenas trabalhar, transformava-se uma criança num adulto precoce.

Também era uma maneira de frear os nossos instintos de “arcalhos” que não eram poucos. Na verdade, até hoje não sei o real significado de “arcalhos”, pois, ainda não o encontrei no dicionário.

Por isso, tia Custódia brincava com os seus bichinhos e também com todas as pessoas amigas, era uma eterna e adorável criança que se manifestava em sua personalidade tão brejeira.

Hoje, analisando-a sob os parâmetros psicológicos, fica evidente que em seu inconsciente ainda dormia uma criança que não pôde se manifestar em sua época própria, em função da repressão autoritária da época, na sua infância de menina pobre. 

Ainda tenho saudades dos tempos quando era verão, mais ou menos nos meses de novembro ou dezembro, época em que íamos comprar os bagres da emenda do Sr. Bidico no Saco do Lessa.

Tia Custódia também ia comigo.

Era a minha inspetora de qualidade, pois conhecia muito bem o bagre gordo, dizia que era aquele que tinha a cola redondinha e isto era verdade.

Lá estando, sentava-se à sombra de uma figueira secular sobre a areia da praia, próximo ao porto das canoas.

E juntamente com outras mulheres, conversava e contava causos.

E se fosse necessário, ficaria a tarde inteira palestrando com as demais companheiras que, em nada perdiam para ela em questão de tagarelar, aliás, esse é um costume muito açoriano de falar muito e em voz alta.

Alguns observadores metidos a analistas dizem que, o açoriano fala alto para suplantar o rumor do vento nordeste, o marulho do mar ou o barulho do engenho de farinha, tracionados pelo esforço de bois.

Este último rumor, realmente é barulhento.

Eu tenho lá as minhas dúvidas, mas acho que o fato de os ancestrais morarem em ilhas (Açores), fazia com que eles, os açorianos, falassem mais alto, pois numa ilha o vento e o mar (oceano) são realmente ruidosos.

Nessas conversações ouvia-se de tudo, mexericos, fofocas, diz-que-diz e histórias de grandes emendas de antigamente, quando a pesca era mais abundante e o peixe mais barato.

Mas, muitas vezes, as conversas descambavam para a corriqueira fofoca.

E nisso as mulheres são especialistas, quando elas não têm um fato concreto para fuxicar, simplesmente inventam um ao seu bel prazer. 

Foi numa dessas idas à emenda do Saco do Lessa, que conheci a minha primeira namorada, a Rosarita, que se achava em férias na casa do avô o Senhor Marcolino.

Ali mesmo na presença de todas aquelas mulheres fuxiqueiras, a maioria de senhoras idosas de pano na cabeça, nos demos a se conhecer, sem a intervenção de alguém.

Tudo foi muito lindo e romântico.

Pena que durou pouco.

Ficamos apaixonados um pelo outro, como se diz, foi um amor à primeira vista.

E a tia Custódia muito nos ajudou nesse relacionamento de verdadeiros amantes, pois o avô dela era tido como um senhor muito brabo.

Fato esse que, mais adiante verifiquei tratar-se de um senhor boníssimo e muito simpático, inclusive, uma vez jantei na casa dele.

Tia Custódia que era viúva tinha certa admiração pelo senhor Marcolino, quando esse também ficara viúvo, ela admirava os olhos azuis do novo viúvo e dizia que ele era um pão.

Na verdade, era apenas uma brincadeira, pois tia Custódia era uma mulher da moda antiga, isto quer dizer que, para ela somente existia ou existiu um só homem, o tio Antônio Faiá.

Na época de boi-de-mamão, mais ou menos pelo mês de janeiro, ela não perdia uma noitada, vibrava e ria muito da bernunça.

Um bicho de armação de bambu meio minhoca e meio serpente, que engolia os meninos e depois os expelia pela traseira.

Tia Custódia simplesmente adorava este momento e fazia uma torcida para que, os meninos logo aparecessem na traseira do bicho.

O Terno de Reis ela acompanhava até altas horas da noite e, de casa em casa, também filava uma gasosa ou um café com bolo, esse era também um dos divertimentos dela que adentrava a madrugada.

Houve um tempo em que tia Custódia veio morar conosco, na verdade, não sei por que razão, mas para nós foi muito bom.

Porque assim não precisávamos nos deslocar até a sua casa que era longinho, agora ela estava perto e era o nosso divertimento à noite, quando estávamos de férias do colégio.

Quando ela nos contava histórias a respeito de bruxas, as mais horríveis possíveis, ela pensava em nos meter medo, às vezes, nos dizia quais as velhas que eram bruxas, e que deveríamos tomar muitos cuidados para que elas não nos chupassem durante a noite.

Depois, como que para aliviar a tensão causada ela nos dizia: “Eu não acredito em bruxas, mas que ai, ai”.

Havia um senhor de cujo nome, eu agora me esqueci, mas ele era muito conversador, cheio de reticências, fazia gestos e pausas quando falava.

Era uma retórica antiga muito pomposa, mas sem conteúdo, na verdade, era um esnobe e tia Custódia dizia que ele era muito “pausudo”.

Nas procissões religiosas desta região que eram e ainda são cíclicas e repetitivas, a tia Custódia sempre acompanhava ditas procissões na traseira, quero dizer no final do desfile.

 Nessas ocasiões, ela se portava em completa circunspeção, balbuciando algumas preces em resposta ao que o puxador de rezas que ia a frente fazia as suas prédicas.

Nessas manifestações ela era a própria açoriana devota e respeitosa, todavia não deixava de reparar os demais acompanhantes para, depois fazer as suas críticas com aquele humor que lhe era natural.

Era obrigação sua ir à Laguna todo o fim de mês, com o propósito de receber a sua pensão previdenciária.

Recurso ou beneficio esse proveniente da aposentadoria do tio Faiá, pois o mesmo era aposentado pelo IAPTEC, em função de ter sido mineiro lá para as bandas de Urussanga.

Nessas viagens que eram mensais, ela servia de intermediária ou embaixatriz entre o povo de Imaruí e o de Laguna.

Pois aqui como lá, viviam muitos parentes entre si.

E com essa freqüência mensal em Laguna, ela visitava todos os parentes levando inclusive alguns presentinhos, tais como: farinha de mandioca, beiju, cuscuz, mãe-benta e outros.

Bem como também filava um almoço ou café da tarde, e de lá também trazia algumas lembranças.

As suas viagens eram efetuadas de ônibus ou de lancha, a do Senhor Dino.

 Mas eu acho que a maioria das vezes ela ia de ônibus, pois adorava um ônibus.

Para ela tudo era um divertimento, não havia tristeza em sua vida.

 Acho até que os acompanhamentos aos funerais era uma forma de se divertir, apesar de sempre se postar pesarosa, compungida e solidária com os parentes do falecido.

Se naquela época houvesse óculos escuros, com toda a certeza, ela usaria um como mais uma bossa para esconder os olhos que nunca lacrimejavam, assim como se faz atualmente em funerais chiques.

Não sei o porquê de estar usando o vocábulo “funeral”, em vez de usar o nome mais comum “enterro”.

Pois esse era e ainda é o termo mais usado.

Inclusive, esse vocábulo também nos dá a idéia ou sugere o de uma procissão mórbida, que é o de carregar o defunto pelas ruas até chegar à Igreja.

Agora, em função do status do defunto, usa-se um carro apropriado para isso.

Na minha infância e na adolescência eu vi muitos enterros vindos de carro-de-boi, o transporte mudou, mas o defunto sempre será o mesmo.

Naquela época, eu batia os sinos e esse costume lúgubre continua até hoje.

É como se fosse uma advertência aos viventes que ficam.

Tia Custódia pelo seu “modus vivendi” era para ter vivido uns cento e vinte anos.

 Infelizmente faleceu com oitenta e nove, mas uma coisa eu garanto, foram os anos mais felizes da vida dela.

Soube aproveitá-los com toda a sua intensidade, embora pobre de bens materiais ela era rica em personalidade, pois angariava e conquistava todos com a simpatia e a sua sincera amizade.

Em nossa família ela é tida como uma figura folclórica, saudosa e de lembranças infindas.

 Hoje, não mais existe uma velhinha açoriana, sorridente e simpática como ela.

Em minhas reminiscências, quase sempre nostálgicas, levanto-a de minhas memórias de adolescente cheio de saudades, pois ela foi para mim a minha anima que se gravou no meu inconsciente, e assim, trago-a comigo de forma silente e carinhosa.

A tia Custódia foi um marco relevante na minha vida, com ela aprendi um pouco de humildade e alguma sabedoria.

Como também, com ela aprendi a ter muita restrição a serviços pesados, principalmente com relação à enxada, que vejo como um símbolo do atraso de todo o açoriano vadio e conversador.

Acho que o melhor trabalho é ainda o intelectual, pois dele deriva todos os conhecimentos que, inclusive, cria as ferramentas para os menos aptos trabalharem fisicamente.

Da enxada não tenho boas lembranças, pois ela nos era imposta como castigo ou, como um meio de cercear os nossos ímpetos de adolescentes, quando a libido incoercível explodia em pulsão sexual.

 

Eráclito.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Eráclito Alírio da silveira
Enviado por Eráclito Alírio da silveira em 04/12/2006
Reeditado em 09/06/2007
Código do texto: T309448