Vida além da vida
José (Zezinho) como era conhecido sempre fora um menino de poucas palavras, de poucos amigos, tinha como companheiro fiel o seu cão Pipoca (assim chamado por ter o hábito de pular em volta de seu dono). Zezinho era filho do caseiro o Sr. Luís, homem honesto que prezava muito sua família e trabalhava para sustentá-la, embora o que ganhava garantia apenas o essencial, Dona Carmem, sua esposa e seus filhos, Pedro, Sávio, Júlia, assim como Zezinho eram a alegria do Sr. Luís.
Zezinho, o filho caçula, era um menino bom, solícito, existia algo em seu íntimo que poucos compreendiam, era como se sua alma já vivenciara suficientemente para entender os mistérios da vida, apesar de sua tenra idade.
Gustavo era o filho do Senhor Augusto, proprietário da casa onde o pai de Zezinho trabalhava, sempre teve tudo o que quis como os melhores brinquedos, as roupas mais caras, muitos “amigos”, mais pelos seus bens materiais do que pela companhia, entretanto, faltou ao Gustavo limites e principalmente amor. Não foi rara as vezes que vendo Zezinho brincar com seus carrinhos de madeira, zombava dele, apontava como que quisesse intimidá-lo perante outras crianças, fazendo Pipoca ranger os dentes, o que era resolvido por Zezinho que passando a mão em sua cabeça o acalmava e logo estava lambendo seu amigo e pulando alegremente.
O tempo foi passando e a cena se repetia agora Gustavo possuía carros do ano, fazia faculdade de medicina, mesmo que não levasse a sério, mas aquele menino arrogante ainda morava em seu interior, e mesmo com seus vinte e poucos anos, a vida ainda não tinha o ensinado a crescer e assim ele continuava escrevendo sua história, deixando a poeira por detrás de seu possante encobrir os seus erros e o rosto de José, que ignorado mais uma vez, agitava suas mãos no ar a fim de respirar melhor.
José ajudava seu pai nos afazeres da casa, era autodidata, aprendera a ler juntando palavras de jornais velhos que a serventia da casa desfazia, o tempo que restava com o pouco dinheiro que recebia, agrado de seu pai, ele corria até a banca de jornal e comprava alguns livros e poucas revistas no intuito de desvendar sua história, seus tormentos, seus delírios talvez, nas entrelinhas de algum artigo que pudesse orientá-lo.
Foi em uma noite, em seu pequeno quarto, extensão do barraco onde vivia com sua família, José teve uma visão, na verdade essa era mais uma visita de seres iluminados que recebia, o cômodo em que se encontrava ficava relativamente pequeno, uma vez que esses seres de luz ocupavam o recinto, como de costume ensinaram coisas sobre a vida, o amor, a compaixão, coisas que José absorvia em seu coração, vieram também como um propósito, de avisá-lo que os dias de Gustavo estavam em termo, sua vida desregrada, sua forma delinqüente de ser havia contribuído para o desfecho, e assim como num relance da mesma forma como chegaram, desapareceram.
Ao amanhecer, José estava se sentindo exausto, toda aquela informação em especial em relação a Gustavo havia perturbado seu espírito, não sabia ao certo o porquê de ter tido tal sinal e o que poderia fazer em benefício. Seu pensamento foi interrompido por um barulho ensurdecedor de motor, seu aposento encontrava-se nos fundos da casa de Gustavo, o mesmo sem cerimônias e sem se importar com o horário, ainda não eram seis horas da manhã, ostentava sua moto, uma belíssima máquina esportiva, presente de seu pai, que sempre ausente e, como de costume tentava compensá-lo.
Continuando seu exibicionismo, ao empinar sua máquina, José pode ver enlaçado em sua cintura, uma sombra, um espectro, algo excepcional, tendo em conta que só havia visto até então espíritos de luz, aquela sombra apoderava-se de Gustavo como se a ela pertencesse, Pipoca estava apreensivo, não pelo barulho, mas por ter a mesma visão de seu estimado dono, e apesar de já não ter mais a energia de sempre, pulava freneticamente, como que quisesse avisar algo, diante dessa cena a visão da noite anterior fazia sentido.
Já se passava das duas horas da manhã e Gustavo estava ausente, os serventes da casa, pessoas mais próximas, estavam receosos, seus pais encontravam-se fora do país, resolvendo isto ou aquilo, coisas “importantes” em prol do futuro de seu filho, foi quando o telefone tocou, e exatamente como José havia conjeturado, aquela moto fora o transporte de Gustavo para outra vida.
Todos estavam perplexos, a essa altura os pais já haviam sido avisados da tragédia, não tinha mais o que fazer. Dona Benta, a governanta da casa acendera uma vela no quanto da casa em intenção a alma daquele menino que ela viu nascer, crescer e se perder...
Envolto nessa nostalgia, José viu o portão principal da casa se abrir e deparou-se com a imagem de Gustavo, seus olhos demonstravam terror ao perceber que apesar de suas incansáveis tentativas ninguém o ouvia, foi quando ele se deu conta do ocorrido e num momento de transe lembrou-se do acidente, da imprudência em ultrapassar um carro em alta velocidade com sua potente moto e agora se deparava com o desconhecido, chorava compulsivamente, não pela indiferença inconsciente de seus entes, mas por todo o desperdício de uma vida, pelas vezes que não abraçou e/ou beijou sua mãe, da ausência de seu querido pai, das vezes que não estendeu uma mão amiga a quem solicitava, da arrogância e da vida materialista, de achar que a vida era uma festa e depois daquilo apagavam-se as luzes e tudo acabava, da falta de dá e receber amor e agora estava além da vida, em total alienação, não havia nada e nem ninguém para lhe ajudar.
Sentou-se na calçada como quem quisesse refletir e com a cabeça baixa e as mãos nos cabelos, num ato de desespero pediu ajuda, a Deus, ao Universo, a alguém que o pudesse ajudar, mesmo que em vida nunca acreditasse nisso, foi envolvido em seus pedidos de socorro que sentiu algo forçar suas mãos, era Pipoca, o cão de José, que sentindo compaixão aproximou-se na tentativa de consolá-lo, em seguida, surgindo de forma imponente, ali estava José, Gustavo não o via mais apenas como o filho do caseiro, havia uma luz envolvendo-o, naquele momento ele percebeu que aquele menino que ele tanto humilhou era o único que ele poderia contar, percebeu que uma vida não foi suficiente para aproximá-los, mas que a morte encarregou-se desta incumbência.
E assim, sentados um ao lado do outro, com Pipoca atentamente observando, passaram horas conversando, José de alguma forma havia entendido sua missão, haveria ele agora de ajudá-lo a entender os mistérios da vida além da vida, auxiliá-lo a reagir a sua perda trágica e acima de tudo a aceitar a sua passagem.