O MILAGRE - UM CONTO DE NATAL

JB Xavier

     Do Mosteiro de São Bento vieram as badaladas, numa melodia triste. Olhei para o relógio: Eram seis horas da tarde. Através do grande painel envidraçado de minha sala pude ver o Vale do Anhangabaú se iluminando com as luzes do Natal.
     Estreitando-se no horizonte, a Avenida São João estava congestionada, mas os luminosos piscando nervosamente pareciam acalmá-la, à medida que os motivos natalinos iam surgindo ao longo dela. Era a hora do “Rush”.
     Faltava apenas quinze dias para o Natal. Fernando, meu Gerente Geral, e eu, trabalhávamos arduamente para atualizar nosso “mailing” de clientes, pois eu não desejava cometer o mesmo erro dos anos anteriores, quando muitos deles não receberam nosso cartão de Boas Festas.
     Fernando trabalhava velozmente no computador, sem se distrair com a cidade que rugia às sua volta. Ao contrário de mim, que a visitava ocasionalmente, e gostava de observá-la e aos seus habitantes, ele era um paulistano convicto e já não se deixava mais afetar pelos dramas humanos da megalópole.
Rapidamente, mas com muita atenção, ele checava
     intermináveis páginas contendo monótonas listas de dados cadastrais. Eu lhe prometera que iríamos para alguma pizzaria após terminarmos o serviço, pois a jornada de trabalho do dia fora duríssima e precisávamos relaxar.
Mesmo tentando aparentar tranqüilidade, Fernando não
     conseguia disfarçar certa ansiedade, pois sua esposa aguardava a resposta dos exames de laboratório que determinaria se ela poderia ter filhos ou não.
     Havia já uns oito anos que eu o contratara para administrar nossas atividades em São Paulo, portanto eu o conhecia muito bem, e sabia que aquela concentração extremada era para ocupar a mente e esquecer um pouco o assunto da fertilidade da esposa.
     Aos 35 anos, Fernando tinha tudo o que um executivo competente pode aspirar: Tinha o respeito e o reconhecimento meu e de todos os seus subordinados, tinha uma esposa maravilhosa, que há quatro anos entrara na empresa como sua secretária, tinha conforto material, e uma posição consolidada de grande estrategista e ótimo piloto dos negócios que estavam sob sua administração.
     Ele conquistava a todos com seu sorriso franco e fácil, com sua gentileza, com seu comedimento e equilíbrio.
A própria história de seu casamento bem demonstrava o extraordinário ser humano que ele era:

     Fernando conheceu Clara numa adversidade terrível. Ele prestava serviços para outra empresa de nosso Grupo – a 3J Consultants - organizando grupos de estudos do comportamento humano, que eram por mim dirigidos. Esses grupos tinham por objetivo compartilhar os problemas pessoais de seus integrantes, de maneira que, com a devida orientação, eles pudessem interagir e ajudar-se mutuamente.
     A tarefa de Fernando era entrevistar os candidatos que participariam desses grupos, cuidando para que, em cada um deles, houvesse os casos mais diversos possíveis, evitando assim redundâncias de históricos comportamentais.
     “O Caso Clara”, como ficou conhecido, foi muito tocante para Fernando, um leigo em psicologia.
     À medida que os encontros com o grupo ao qual Clara pertencia foram acontecendo, ela foi se abrindo e contou-nos que já havia pertencido à burguesia da cidade, à classe média alta. Contou-nos também como descobriu que o ex-marido era um dos principais traficantes de drogas da Grande São Paulo. Narrou-nos a noite em que ele a convidara para passar uma noite especial num motel na periferia da cidade. Ela então deixou as crianças com a guarda de Clarisse, a babá, e foram se divertir. Mas ele a levou a um matagal nas proximidades da represa Billings e lá espancou-a violentamente até quase à morte, abandonando-a à sorte. Somente no dia seguinte, ao amanhecer, ela foi encontrada, agonizante, e conduzida a um hospital.
     Ele a maltratara brutalmente, quebrando-lhe vários ossos, pisoteando-lhe o rosto e estuprando-a com instrumentos mecânicos, numa demonstração de bestialidade sem igual.
     Numa comovente confissão, Clara contou ao grupo que lembrava de pouca coisa de seu passado, mas que, dentre essas coisas, tinha certeza de ter dois filhos, um menino de quatro anos chamado Allan e uma menina recém nascida, chamada Tânia, esta, com poucos meses de idade.
     Contou-nos ainda que, ao tentar rever os filhos, foi informada que sua antiga casa ardera em chamas e que seus dois filhos haviam perecido no acidente. Teve certeza de que o ex-marido eliminara também os dois filhos, para cortar as relações com os sogros e assim desvencilhar-se completamente do seu passado. Além disso, ela sofrera ainda mais duas tentativas de morte por parte do ex-marido.
     Diante da impotência para fazer algo, e sem os filhos para lhe servir de estímulo, Clara resolveu recomeçar sua vida e, como tinha prática em secretariado, Fernando a aproveitou como sua secretária.
     Entretanto, os danos físicos que sofrera, cobraram um preço alto: Ela tornou-se estéril, e desde que casaram, Clara e Fernando lutam com todas as forças para ter um filho, único presente que pedem a Deus em todos os natais.
     A atitude de casar com Clara, aumentou ainda mais minha admiração por ele, pelo fato de ter aberto mão de casar com uma moça sadia que pudesse lhe dar o filho que tanto desejava, e ter decidido lutar ao lado da esposa pela possibilidade – cada vez mais remota – de sua gravidez.
     Assim é Fernando - um líder carismático, a quem as pessoas recorrem quando precisam de uma opinião sincera, ou simplesmente de um ouvinte atento.
     Durante todos os anos de nossa convivência, nunca ouvi dele uma só queixa que pudesse classifica-lo como uma pessoa amarga, pessimista ou fatalista. Ao contrário, muitas vezes banhei-me em seu silêncio, quando, pacientemente, me ouvia falar sobre as dificuldades nos negócios, sobre minha vida nômade, ou sobre o peso da responsabilidade de manter a roda girando, porque disso dependia o destino de muitas famílias.
     Durante esses meus ocasionais desabafos, seu olhar tranqüilo, e seu sorriso benevolente, me confortavam sobremaneira, e assim, foi crescendo entre nós uma amizade que transcende a esfera profissional.
     Por exemplo, com ele adquiri o hábito de, nos dias que antecedem o natal, me vestir de Papai Noel e distribuir presentes para as crianças em creches e hospitais. Era o meio que ele encontrava para estar próximo de crianças.

     As badaladas do Mosteiro de São Bento cessaram e marcaram o fim do expediente.
     Todos se foram, ficando somente Fernando e eu, tentando terminar o tedioso trabalho de selecionar clientes.
Ali, no vigésimo segundo andar, pela imensa janela panorâmica que ficava à minha esquerda, eu podia ver o burburinho da cidade, com suas ruas e avenidas que se contorciam nervosas, como rios mágicos de luz, a se perderem na distância. Até onde a vista podia alcançar, estendia-se um vasto mar de luzes, como um magnífico tapete celestial.

     Eu estava assim, distraído, quando o telefone tocou na sala de Fernando, que ficava ao lado da minha. Pelo toque, vimos que era sua linha particular, que o conectava à sua casa.  Fernando não moveu um músculo, apenas me olhou como a me dizer “por favor, atenda você”.
Entendi imediatamente. Provavelmente ele não queria ser o primeiro a saber das novidades, caso as coisas não tivessem corrido como se esperava.

     Pisquei um olho otimistamente para ele e levantei-me para atender. Eu acompanhara de perto - e desde o início - o tratamento de Clara, porque o médico que a atendera, era um velho amigo de faculdade, e fora indicado por mim.
     - Alô! – disse eu tentando aparentar tranqüilidade.
Ouvi apenas o silêncio no outro lado da linha, e um soluço seguido de um choro manso e incontrolável...

     - Clara – tornei a falar, não é o Fernando...sou eu...aconteceu alguma coisa? Espere um pouco que vou chamá-lo...
     - Não! - disse ela entre soluços – eu queria lhe dar uma boa notícia...dizer que estou grávida... mas não estou....nunca vou estar...
     - Clara, por favor , acalme-se...eu...
     - Eu queria lhe dar esse presente de Natal – continuou ela entre soluços - e retribuir tudo o que ele já fez por mim...mas Deus está sendo injusto comigo...
     Olhei para a porta e vi Fernando que se aproximava. Fazendo-me sinal para que continuasse ao telefone, ele sentou-se numa cadeira próxima. Coloquei a ligação no viva-voz e tentei dizer algo coerente.
     - Clara, não blasfeme...em nome de Deus...Ele tem sido bondoso para com você...você está viva e tem um marido maravilhoso...
     - Sim! – disse ela num grito histérico entremeado pelo choro – um homem maravilhoso que casou comigo por compaixão!!
     - Clara, não diga isso...não é verdade...ele ama você...
     - Um homem maravilhoso, a quem tenho privado do direito de ser pai! Um homem que surgiu tarde demais em minha vida! Um homem que casou com uma aleijada...! O que deseja Deus de mim? Onde foi que eu errei para tornar infeliz um homem como o Fernando?
     Enquanto eu falava, vi Fernando sentando ao contrário na cadeira, com a cabeça sobre os braços apoiados sobre o encosto, enquanto seus ombros se sacudiam num choro silencioso. Compreendi toda a extensão da tragédia que se abatia sobre aquelas vidas. Paradoxalmente, não havia nada que eu pudesse fazer, ou dizer.
     No outro lado da linha, Clara apenas chorava após o desabafo.
     - Você está aí, Clara? – perguntei...ouça...a Marta está indo para sua casa...tome um pouco de água com açúcar e espere que ela chegue...
     - Eu nunca mais vou ter um filho, você compreende isso? Nunca mais...! Todos os natais eu rezo para que Deus me dê esse presente e ele o que faz? Nada!
     - Clara, por favor...a Marta...
     - Eu só quero um bebê – repetia ela entre lágrimas.
     - Clara, por favor...acalme-se...
     - Deus me abandonou...Ele me abandonou...
     Ouvi o desligar do telefone e foi como se a dor daquele casal se houvesse transferido para mim. Fui até onde estava Fernando e o abracei fraternalmente, enquanto ligava do celular para o hotel, para que Marta, minha esposa, fosse para a casa de Fernando. Em seguida liguei para o amigo médico que atendia Clara.
     Tive sorte, ele estava em casa. Após informar-lhe sobre o estado de ânimo do casal, perguntei-lhe se não havia nada a fazer...
     - A Medicina já fez a sua parte – disse-me ele – o útero de Clara está perfeito, mas seu complexo hormonal não funciona, e assim, ela não ovula...
     - É possível que o problema seja psicológico? – indaguei.
     - Com tudo por que ela passou, as chances de seu problema ser psicológico são de 99 %. Sua saúde está ótima.
     Desliguei o telefone e fiquei por longos instantes dando tapinhas nas costas de Fernando, tentando anima-lo. Como psicólogo eu sabia que nada poderia ser dito que servisse de consolo. Há momentos na vida em que as respostas e a força devem ser buscadas dentro de nós mesmos.
     Meus anos de estudos sobre o comportamento humano me tornaram um cético em termos de religião. É claro que os anos de condicionamento religioso da infância faziam com que eu me sentisse desconfortável quando ouvia alguém imprecar contra Deus, mas era apenas isso, um desconforto passageiro.
     Eu acreditava que todas as respostas para as atribulações do ser humano encontravam-se nele próprio, não obstante a fé servir de apoio nesse processo de busca.
     - Vamos caminhar um pouco – disse eu finalmente, tentando tirar Fernando daquele torpor – A Marta estará com Clara em pouco tempo... Acho que você não deveria ir para casa agora...Venha, vamos deixar o resto do trabalho para amanhã...
     Fernando levantou-se vagarosamente e foi até o toilette, onde passou uma água no rosto, tentando se recompor...
     - Desculpe-me pelo fraquejo – disse ele quando retornou – eu tenho pena de Clara...A vida tem sido cruel com ela...
     - Sssshhhhhh – respondi colocando um dos dedos sobre os lábios, pedindo-lhe silêncio. Deus tem urgências maiores a atender, com certeza...Venha, vamos descer e curtir um pouco o espírito natalino...depois eu vou com você até sua casa...Marta tem os números de nossos celulares e nos acionará caso seja necessário.

     Em poucos instantes estávamos na apinhada Rua São Bento. De lá olhei para o alto, e vi nossa logomarca toda iluminada, no topo do edifício Martinelli. Cutuquei Fernando com o cotovelo para lhe mostrar a beleza de um dos edifícios mais antigos de São Paulo. Ele olhou para o alto também e um leve sorriso surgiu em seus lábios.
     Com o braço sobre seus ombros, eu o confortava enquanto descíamos a ladeira da Avenida São João em direção ao Largo Paissandu, onde há uma pequenina capela. Não sei direito o que me levou até lá, mas caminhamos na direção da igreja, como se já houvéramos combinado isso previamente.
     Lá chegando, entramos na minúscula igrejinha – eu não entrava numa igreja há anos! – e o silêncio nos envolveu completamente. Era como se tivéssemos entrado num mundo mágico. Todo o burburinho da cidade cessou, toda a pressa dos passantes desapareceu. Uma penumbra reconfortante acalmava o espírito, e à frente, sob um altar simples, um grande crucifixo era tenuamente iluminado por uma lâmpada vermelha.
Fernando adiantou-se, e benzendo-se, sentou-se – ou melhor, desabou - no banco simples de madeira, onde ficou a observar a imagem do Cristo Crucificado. Achei melhor não perturbar esse momento, e sentei-me num banco logo atrás dele. Sua dor era intensa, física, palpável, e eu quase a podia sentir em mim. Poucas vezes na vida vi-me tão impotente, tão incapaz.

     Olhei para o Cristo e fiz uma coisa que há décadas não fazia. Orei. Eu, que há anos não rezava, não tendo a quem apelar, orei com todas as minhas forças, suplicando ao Deus-Pai que tivesse piedade de Clara e Fernando, que lhes desse uma nova oportunidade de vida, que não os punisse por erros que não praticaram, que permitisse que a data do nascimento de Jesus fosse o começo de uma nova vida para eles...
     À minha frente, os ombros de Fernando sacudiam-se de vez em quando, sinal de que ele não conseguia mais conter as lágrimas que o atormentavam. Ele estava sofrendo muito. E quanto mais eu o observava, mais aumentava a intensidade da minha momentânea fé nas orações, até que, repentinamente, tive a sensação de estar sendo extirpado de mim mesmo. Era como se eu pairasse numa atmosfera alheia ao ambiente físico da igreja. Uma espécie de silêncio total e indescritível me envolveu repentinamente e senti-me flutuar num mar de luz e paz que eu supunha não ser possível existir. Rostos desfilaram em minha frente, lugares da cidade rodopiavam como caleidoscópios diante de mim, até que uma imagem brilhante pairou mais tempo que as outras em minhas visões. Era uma espécie de luminoso de cinema, ou algo parecido, que eu sabia já ter visto um dia, mas que me era virtualmente impossível identificar naquele momento. Curto instante durou a aparição, e em seguida outras imagens a substituíram, mas esta foi definitivamente a imagem que me marcou e que não me saiu mais da memória.
     Depois dessa impressionante experiência mística – relutei por muito tempo em chamá-la assim - levantei-me e fui para o fundo da igreja, ainda sob o impacto da visão que tivera. A imagem que me marcara tanto, me vinha ainda à memória, e por vezes eu quase a identificava. Era um lugar da cidade, disso eu tinha certeza, mas qual? E por que eu ficara pensando nisso?
Muitos cartazes com mensagens religiosas estavam afixados na parte interna da porta da igrejinha, e quando Fernando finalmente veio ter comigo, apontei-lhe uma delas: “Entrega to teu destino ao Senhor, confia nEle, e tudo o mais Ele o fará – Sl 2:25” Fernando me olhou com uma imensa tristeza no olhar. Em seguida saímos da capela.

     - Aonde vamos? ´perguntou ele.
     - Vamos dar uma olhada no Teatro Municipal – respondi – talvez haja algo bom para ser visto.
     - Não me leve a mal – respondeu Fernando – mas eu preferiria caminhar um pouco...
     - Ok! Façamos isso então! – respondi – e fomos até o cine Olido, que hoje não existe mais - ver os cartazes
- Talvez possamos trazer a Marta e a Clara para ver um filme amanhã...

     Saímos caminhando vagarosamente afim de aumentar o tempo de chegada ao cinema, pois ele fica praticamente em frente ao Largo Paissandu.
     Os luminosos do cine Olido me trouxeram à memória a visão que tivera na igreja, mas ainda não era isto que eu havia visto. Definitivamente não era.
     Combinamos em trazer as esposas ao cinema na noite seguinte, pois estava sendo exibido um ótimo filme sobre o natal.
     Depois de olharmos os cartazes dos filmes, seguimos caminhando. Eu desejava ir até a Av. Ipiranga, mas Fernando enveredou pela D. José de Barros, e essa decisão mudaria para sempre nossas vidas.
     - Vamos até à rua 24 de Maio – disse ele – conheço um ótimo restaurante lá...
     Mal eu tinha dados alguns passos pela rua quando vi, à minha frente, os enfeites luminosos do cine D. Cassé, um cinema decadente, que só exibe filmes pornográficos. Fiquei parado, estupefato. Era essa, exatamente, a visão que eu tivera na igreja.
     Um arrepio percorreu a minha nuca. Aquele era um lugar especial. Eu sabia que sim! Mas como um lugar daqueles poderia ser especial? E por que uma experiência tão marcante e sagrada me havia indicado um lugar miserável e corrompido como aquele?
     Para não parecer ridículo, eu nada havia falado a Fernando sobre a visão que tivera, e ainda bem que não o fizera, porque, aparentemente, o local nada tinha de especial, ao contrário, era um antro de corrupção.
     Jantamos no restaurante que Fernando indicou e depois levei-o para casa, onde fiquei por algum tempo, juntamente com Marta, fazendo companhia ao casal. Combinamos que na noite seguinte iríamos ao Olido ver “Hook” - Gancho - o fantástico filme sobre a Peter Pan e o Capitão Gancho, estrelado por Robin Williams e Dustin Hoffmann.
     Tive que fazer malabarismos para explicar porque iríamos ao Olido, um cinema de boa qualidade, com duas salas de projeção, porém encravado num trecho promíscuo da outrora resplandecente Avenida São João.
     Como lhes explicar a estranha compulsão que a visão da noite anterior exercia sobre mim? Como lhes explicar que eu precisava passar novamente diante do Cine D. Cassé, como se uma força invisível me conduzisse a isso?
     Embora eu não pudesse imaginar o que um lugar tão execrado pudesse ter de especial, eu desejava ardentemente voltar lá.
     São Paulo, à noite, transforma-se em outra cidade. Os espaços sob as marquises, que antes eram entradas de lojas, abrigavam agora revistas pornográficas, vigaristas, Jogadores e todo tipo de desocupados.
     Às vinte horas, aproximadamente, deixamos o carro num estacionamento da Avenida Rio Branco, e caminhamos até o Olido. Cruzar o largo Paissandu à noite é, no mínimo, uma imprudência, porque pelas suas vielas apinham-se os degredados da sorte: Bêbados, prostitutas, ladrões, valentões...A ralé social que a cidade diuturnamente esconde embaixo do tapete.
     Como o filme estava programado para as 21:00 horas, sugeri que fôssemos até a Mesbla – hoje falida - para tomarmos um cafezinho no Siena, um dos melhores cafés-restaurante da cidade. Na verdade eu sugerira isso, porque para chegar à Mesbla, teríamos que passar diante do Cine D. Cassé. Eu precisava me livrar dessa sensação de urgência em ir até lá!
     Passamos novamente defronte à igrejinha do largo, e, quando entramos pela rua D. José de Barros, uma inexplicável sensação de euforia foi tomando conta de mim. Era uma espécie de felicidade suprema pelo atingimento de uma meta, ou pelo desimcumbir de uma missão que eu não tinha a mínima idéia do que poderia ser.
     Então parei diante do cinema pornográfico e fiquei por longos instantes a olhar para seu cartaz iluminado. O que ele queria transmitir-me? Por que ele me trouxera ali, mais uma vez?
     Marta e Clara reclamaram quando parei naquele ambiente imundo.Elas desejavam sair logo dali e chegar à Mesbla, ao fim da quadra.
     Enquanto eu olhava hipnotizado para as luzes, sentI um puxão nas minhas calças. Dei um passo para trás, assustado, mas quando olhei para baixo, vi que era apenas um garoto de uns oito anos, rosto imundo, trajando farrapos, que me pedia esmolas.
     -Vamos embora daqui! Disse Marta me puxando pelo braço – esse lugar é perigoso!
     - Espere – respondi. Já vou! Deixe-me primeiro dar algum dinheiro a esse menino...
     - Não dê esmolas – Respondeu Marta – você estimula a vadiagem!
     Sem dar ouvidos à minha esposa, estendi ao garoto algumas moedas que havia em meu bolso.
     - Obrigado – respondeu o garoto – o senhor tem alguma coisa para minha irmãzinha comer? Eu não consegui ganhar nada hoje o dia inteiro e ela está com muita fome!
     - Olhei para minha esposa e amigos e um nó na garganta me impediu de falar.
     - Onde ela está – perguntou Fernando, sem emoção, acostumado que estava com a miséria das ruas de São Paulo.
     - Está me esperando ali na nossa casa – respondeu o garoto.
Seguindo o garoto, fomos todos até a parede do outro lado da rua. “A nossa casa” a que o garoto se referia, era uma caixa de papelão virada de lado, conta a parede, dentro da qual se abrigavam.

     Quando olhei para aquela caixa, vi a sombra da cruz que a luz da árvore de Natal do cartaz do cinema lançava sobre ela. Era essa visão que eu tivera na igreja! Nesse instante ela voltou com toda a nitidez à minha memória. Um calafrio me passou pelo corpo e senti as têmporas latejando como se minhas artérias fossem explodir. Eu não tinha mais dúvidas. Algo muito especial me trouxera aquele lugar desolado e triste.
     O garoto “bateu” delicadamente na caixa e uma linda menininha, aparentando uns quatro anos de idade, saiu de dentro dela. Tinha os cabelos sujos, a roupa em andrajos, mas de seu rosto rechonchudo emanava uma luz inocente, como se um anjo houvesse se materializado diante de nós.
Minha esposa e Clara se comoveram imediatamente, e foram direto ao encontro da garotinha.

     - Jesus Cristo – disse eu a Fernando, tentando segurar as lágrimas – como pode um pai e uma mãe abandonar uma criança dessas à sorte, nas ruas de uma cidade violenta como essa?
     Fernando, também visivelmente emocionado, caminhou até a menininha e se agachou junto a ela, como sua esposa e a minha. Todos tentavam ajeitar-lhe a aparência imunda.
     - Onde estão seus pais? Perguntei ao garoto.
     - Nosso pai foi embora...ele era um homem muito mau – disse a menininha, antes que o irmão pudesse responder.
     - E sua mãe? Tornei a perguntar, dirigindo-me à garotinha.
     - Ela foi comprar uma casa para nós, e disse que voltava logo! – respondeu ela ingenuamente.
     - Faz tempo que ela foi? – perguntou Clara?
     - Não sei –respondeu a garotinha – eu era bem pequenininha...
     Cristo que me perdoe pela onda de ódio que cresceu em meu coração ao ouvir essa resposta. Sua própria mãe a enganara! Mentira que voltaria e nunca mais voltou. Abandonou-os simplesmente à própria sorte!
     - Fui eu que disse isso a ela – falou o garoto que permanecera calado até então. Eu não sabia o que dizer...Mamãe saiu um dia e não voltou mais...Eu não queria que Tânia sofresse...
     Eu não percebi que Clara pôs-se de pé num ímpeto, ao ouvir esse nome.
     - Bonito nome tem a sua irmã! E você, como se chama?
     - Allan – respondeu o garoto abraçando a irmãzinha para protegê-la, certamente pensando que éramos policiais e que iríamos levá-los pra algum lugar.
     Então um milagre aconteceu. Clara, entre lágrimas – que eu achei exageradas – perguntou.
     - Como se chamava sua mãe?
     - Clarisse! Respondeu o garoto num fio de voz.
Não pretendo descrever aqui a cena que se seguiu. O grito lancinante que Clara deu no meio da noite, e que pôs em polvorosa todos os mendigos da rua. Seria demasiado cruel para mim descrever o abraço alucinado que ela deu em ambas as crianças enquanto gritava em altos brados: “Meus filhos!” “Meus filhos”

     Inútil também seria descrever os dias que se sucederam, quando descobrimos que Clarisse, a babá de Clara, salvara as crianças de um incêndio criminoso, há quatro anos, e que fora assassinada mais tarde, numa tentativa de calar a voz da Justiça.
     Não pretendo tomar-lhes tempo sequer em descrever-lhes como os advogados de nossa empresa, num trabalho brilhante, colocaram atrás das grades o assassino monstruoso que atentara contra a vida dos próprios filhos.
     A última cena desse episódio que guardo na memória, foi ver Fernando abraçando a esposa e as crianças. Depois, vergado pela emoção que tomou conta de mim, apoiei-me em Marta e sentei no meio-fio da Avenida São João, bem defronte à igrejinha do Largo Paissandu.
     Alguma coisa acontecera naquela noite que eu levaria provavelmente a vida toda para compreender.

FIM
JB Xavier
Enviado por JB Xavier em 04/12/2006
Reeditado em 20/12/2014
Código do texto: T308991
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