Zuera
Jornal Evolução,Segunda, 11 de julho de 2011 16:35
Domingo de primavera, ouviu os sons renitentes do campanário revirando-se na imunda pocilga. Empertigou-se observando com o rabo d’olho a figura estampada no espelho, recompôs-se. Havia prometido levar a velhinha da pensão à missa das 9,00 horas, mas a reunião etílica-desportiva-cultural da véspera se estendera madrugada afora no boteco do Atanásio.
Cabeça explodindo, Zuera levantou-se lentamente.
- Que porre meu... e cambaleante saiu da espelunca rumo à catedral (há muitos não dava o ar da graça por lá)
Chegou até a praça frente à igreja largando o corpo sexagenário sobre um banco e deixando a nobre intenção a ver navios, a velhinha que esperasse, talvez em outra ocasião?
Lembranças ressoavam remetendo seus pensamentos para os anos sessenta, um belo rapaz no fulgor dos 14 anos, quantas esperanças então abrasavam sua mente, dias de lirismo e descompromisso.
A vida e a natureza eram parceiras agradáveis, o sol lhe sorria mesmo em dias tempestuosos.
N’um flash os versos de Casimiro de Abreu:
“Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem, mais!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!”
Um velho solitário e alquebrado pelo tempo:
Éramos seis...
Não somos mais
Eles se foram
Dores cruciais.
O pai um alcoólatra crônico, cedo abandonara a família e a mãe trabalhava para a vizinhança lavando roupas a fim de sustentá-los.
Menino ainda, Zuera fazia seus pequenos bicos: entrega de jornais, engraxate e auxiliar de pedreiro, etc... As irmãs foram trabalhar de babás na capital e ele não teve mais notícias delas. Quando a mãe faleceu, sequer apareceram.
Ficou só, de favor na pensão da vizinha que o recebera em troca de alguns favores, alguns não condizentes com a moral e os bons costumes. Temente a Deus martirizava-se por sua conduta, mas qual a solução? Precisava sobreviver de qualquer modo.
Tornou a olhar para a escadaria da igreja, a algazarra das crianças correndo ao redor do coreto da praça trouxe-o a realidade.
Bem que algumas delas poderiam ser suas netas, que pena não se casara, e agora já se fazia tarde para subir ao cadafalso, em sua trágica existência, só uma paixão, um amor-bandido que lhe surrupiara “o cu das calças”...
Encantava-se com os casais de namorados que passeavam pela praça arrulhando promessas de amor.
Voltou o olhar para a escadaria e seus painéis cerâmicos retratando a Via Sacra, de uma época mais recente, mas como estavam deteriorados.
E a capelinha de pedra ao pé do morro da igreja com suas velas bruxuleantes, solene e aconchegante, infelizmente para o desgosto da maioria, descuidada, papéis pelo sagrado chão, bitucas de cigarros, seringas descartáveis, maricas para uso do crack, camisinhas, copos descartáveis ...um desrespeito.
Trabalho árduo para os garis todas as manhãs.
O povo não dá valor para seu patrimônio cultural – sentenciou.
Orgulhava-se de ter contribuído com seu trabalho voluntário nos finais de semana na construção da capela e da escadaria e adorava observá-las quando o sol dava seus primeiros sorrisos na manhã.
Raios tímidos lambiam as torres gêmeas da catedral e a pracinha iluminava-se, a bruma dissipava-se e fiéis envolvidos em cachecóis desciam as escadarias após cumprirem o solene compromisso matinal.
Recordou de suas idas e vindas ao templo: primeira comunhão, casamentos, enterros, missas solenes e os vitrais? O do altar-mor é lindíssimo, indescritível...
Ainda o impressionava a figura do Nazareno coroada de espinhos, o corpo pregado a cruz e a expressão do terrível sofrimento. Aos seus pés as imagens das santas em estado de graça, olhos voltados aos céus.
Como puderam infligir-lhe tanto sofrimento, um homem de vida modesta que só pregava a palavra de Deus?
Mais que a chibata, as línguas ferinas o dizimaram.
Se eu vivesse naqueles tempos, defenderia o Salvador de seus algozes ou lavaria as mãos como Pilatos e faria parte do coro que gritava raivosamente: crucifique-o...crucifique-o... soltem Barrabás?
O canto dos sabiás nas árvores da praça o despertaram, já doze horas e os sinos dobram (por quem os sinos dobram?), as crianças se foram, praça vazia, as escadarias margeadas por minúsculos cedros, vazias, ruas semidesertas.
Azaleias brancas florescem no morro ajardinado da igreja matriz moldadas a formar o letreiro da cidade no mês de setembro.
Zuera se espreguiça no banco, abotoa o paletó surrado, levanta-se com lentidão, dores nas costas, estômago vazio, garganta seca.
Sem pressa chega ao boteco do Atanásio ao encontro dos amigos de infortúnio: Canha, Barranco e Fritz.
Comentavam pesarosamente sobre a tragédia ocorrida com o Zé Arruela. A mulher o deixara na mão e se atirara nos meigos braços do guarda-noturno. Endividado e doente passara a corda no pescoço deixando três pequenos órfãos.Mas que vida era essa, porra? Será que o cara lá de cima estaria cochilando?
Juntou-se a eles frente ao balcão imundo:- Solta um rabo de galo que tô com a goela seca!
De soslaio o dono do botequim apanha o vermute, a maldita e um copo médio, servindo no recipiente a mistura etílica, “energético” para suportar a solidão.
- Ô mermão põe aí uns Rolmops e providencie urgente a próxima rodada, pra toda a turma. Sorrisos amarelados em bocas de raros dentes... cachacearam até o cair da tarde entre conversas desconexas, discussões esdrúxulas e burburinhos. Os parcos tostões sumiram dos bolsos rotos e os amigos sumiram pelos becos escurecidos do bairro.
Zuera retornou ao doce lar em companhia da solidão, rotina que tornara sua existência inútil há muito.
Sacou as botinas e deitou-se, sequer tirou a roupa impregnada dos maus cheiros do boteco.
Num flash as imagens de tempos inesquecíveis: brincadeiras de crianças: bola de gude, rolimã, pipas, futebol com bola de meia, os banhos de rio e o rosto encantador e sorridente da professorinha da escola primária. Do curto período de infância à turbulência da juventude: brigas, pequenos furtos e o primeiro gole. Homem feito o estafante e monótono trabalho.Mas no fundo, tornara-se um sujeito bom, miserável, mas bom!
Sirenes malditas ferem-lhe os ouvidos, é segunda-feira, ouve-se o barulho infernal de ônibus, carros e buzinas estridentes, levanta-se de supetão, já é hora...
A ilusão de que ainda fazia parte do mercado de trabalho o traiu, há muito estava descartado pelos miseráveis que o sugaram.
O frio percorreu-lhe o corpo alquebrado, voltou então para o catre malcheiroso e tornou a dormir. Os pesadelos da madrugada passada deram-lhe trégua.
Sonhos coloridos povoavam sua mente, não se recordava da última vez que sonhara assim, colorido e bonito.
A praça bucólica e seus bancos de madeira coloridos, o velho coreto, passeios circundados de flores e borboletas azuis adejando sobre os canteiros floridos.
Dos pés da escadaria da igreja, profusão de luzes ofuscavam o olhar do solitário observador sentado na calçada.
Esfregou os olhos embaçados, não sentia mais as dores que por muito tempo lhe causavam tantos danos.
E então, a mística visão do drama do Calvário,não aquele teatro à que assistia anualmente frente a Catedral, com atores locais, figurinos amadores transmutados, a encenar a milenar história da crucifixão do Cristo.
Anjos e ninfas em vertiginosos movimentos cravejavam as escadarias de rubis e pedras escarlates, enormes velas bruxuleavam ao derredor exalando aromas de alecrim.Repentinamente, a aparição: sete anjos com sete trombetas...apocalipse??? - o carro de fogo vindo em sua direção.
Uma voz trovejante proclamava - já não pertences mais a este mundo Zuera, d’ora em diante serás Dimas e ainda hoje estarás comigo no Paraíso
( “Hodie mecum eris in Paradiso”).
- Algo estranho está a acorrer pensou a velhinha, enquanto confortavelmente se balançava na rústica cadeira.
- Não tenho visto o cretino do Zuera desde a manhã de domingo.
Levantou-se e lentamente atravessou o corredor, ao fundo o minúsculo quarto do albergado.
Forçou a maçaneta, porta trancada, retornou à recepção, apanhando uma cópia da chave do quarto pedindo à única funcionária que a acompanhasse.
Abriu, gritos histéricos ecoaram, lamentações, sussurros.
- Alô...Alô...do pronto socorro?... aguardamos sim!
Estridentes sirenas de ambulância, a freada brusca em frente a pensão.
- Este homem provavelmente teve uma hipotermia balbuciou o enfermeiro.
Do pequeno ambiente exalava um aroma agradável de sândalo.
No rosto maltratado de Zuera, um sorriso.
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Este conto faz parte de nosso livro: "VIDA, MOTIVOS: DEGRAUS" lançado este ano nas Feiras do livro de São Bento, Campo Alegre e Rio Negrinho(SC).