CINCO  PERGUNTAS  AO  PAI  NATAL

                                                   por CARLOS DOMINGOS


     Dezembro entrara tempestuoso e gélido. No jardim fronteiro à Escola Pri-mária  as  árvores  bailavam  furiosamente ao ritmo desvairado das sirenes do vento.
     Era o fim da tarde e era também o fim do período de aulas antes do Natal. Ao toque da campainha, como explosão de pássaros chilreantes, um turbilhão de garotos, entrapados como podiam contra o frio, espalhou-se pelas imedia-ções do edifício.
     – Joãããão!!! – gritou  uma  voz  infantil à saída do portão da Escola. Era o Ricardo,  aluno  da  2ª classe, mochila às costas, grossas luvas de lã, gorro de pele até às orelhas.
     Lá mais adiante, o interpelado,o João, parou e voltou-se. Mãos nos bolsos, cachecol à volta do pescoço, aproximou-se, a passos lentos, do Ricardo.
     – O que foi que pediste ao Pai Natal? – quis saber este.
     O João não respondeu logo.  A professora marcara para essa tarde, como último  exercício  de português,  «Uma carta ao Pai Natal».  Já o ano passado tinham  também  escrito  uma  carta com pedidos de prendas  mas,  talvez por escreverem ainda muito mal,  poucos pedidos foram atendidos.  O João, esse, não  tivera sorte nenhuma,  ao contrário do Ricardo,  que recebe sempre tudo aquilo que deseja.
     – Então, o que foi que pediste? – insistiu o Ricardo.
     – Pedi-lhe um piano.
     – Um piano!! – admirou-se o outro.
     – Pois. A minha tia é professora de música. Se eu tivesse um piano, sempre ela me ia dando umas lições...
     – Eh pá! O Pai Natal não vai trazer isso. É muito pesado. Porque é que não pediste outra coisa?
     – Pedi. Se não puder ser o piano,  então que seja um vídeo e uma televisão para o meu quarto. E tu o que é que pediste?
     – Muita coisa. Livros, brinquedos, uns esquis para a neve, jogos de compu-tador. E vou ter tudo isso.
     – Como é que sabes?
     – O Pai Natal dá-me sempre tudo aquilo que eu peço.
     Um carro vermelho parou entretanto junto do Ricardo.
     – É a minha mãe. Queres boleia?
     – Bom...
     – Anda. Passamos perto da tua casa.
     Já instalados no banco de trás, a mãe do Ricardo perguntou:
     – És o João? Como é que vão as coisas lá na Escola?
     Foi o Ricardo quem respondeu:
     – Ele é o melhor da classe.
     – Ah, bom...
     Após um silêncio, a mãe do Ricardo lembrou ao filho:
     – Ricardo, hás-de convidar o João para ir lá a casa estudar contigo.
     Depois, já à despedida, o João:
     – Obrigado pela boleia. E feliz Natal.
     – Feliz Natal também para ti e para os teus pais.

     Em  casa  do João já começara a azáfama da árvore de Natal. Um pinheiro adquirido no quartel dos bombeiros, espetado na terra de um grande vaso, era progressivamente  decorado  com fitas brilhantes,  luminárias, figuras natalícias, estrelas e, finalmente, as prendas misteriosamente envolvidas em lindos papéis de fantasia.
     Etelvina, a mãe do João, era quem se encarregara da Árvore, com a  cola-boração preciosa e entusiástica do filho.
     Fazer as compras de Natal foi a operação mais complicada, especialmente no que toca às prendas.  Era  preciso  manter  em segredo o que cada um iria receber.
     A elaboração  dos embrulhos passou a ser uma actividade secreta de cada membro da família.  À medida em que iam ficando prontos, eram logo deposi-tados junto da Árvore. E, quanto mais ia aumentando a quantidade de prendas, mais crescia a ansiedade do João.
     No entanto,  a sua maior impaciência, embora reprimida, dizia respeito aos presentes que esperava receber do Pai Natal. E esses não seriam colocados na Árvore. Seria o Pai Natal em pessoa que os viria deixar na chaminé na própria noite de Natal. Precisamente à meia-noite.

     Nos dias que antecederam  o Natal as grandes tarefas desenrolavam-se na cozinha. Sucediam-se as filhós, as rabanadas, as farófias, o arroz doce, o pão-de-ló.
     A Etelvina desdobrava-se,  Daniel, o pai,  auxiliava no que podia e o João, teimando em ajudar, acabava lambuzado de açúcar e polvilhado de farinha.
     – Menino,  são horas de ir para a cama.  Já  para  a casa de banho!  Dani, encarrega-te agora tu dele, enquanto eu acabo isto.

     Debaixo do chuveiro, o João ensaboava-se.
     – Pai, como é que o Pai Natal vai conseguir descer pela chaminé, se nós não temos chaminé?
     – Não temos chaminé?
     – Não. Temos um exaustor de fumos, com um tubo muito estreito, que nem um gato lá cabe.
     O pai engoliu em seco.
     – Sabes,  João,  o Pai Natal  é  um  mago.  Só  um  mago  consegue vir da Lapónia até aqui sem gastar tempo nenhum.  E é por não gastar tempo que ele pode estar à meia-noite nas chaminés de todos os meninos.  E  é também utili-zando a magia que ele pode passar por um tubo estreito ou por qualquer orifício ou até mesmo através das paredes...
     – Eu pensava que isso era só nas histórias ou nos filmes da televisão. Pai, tu acreditas nisso?
     – Olha, filho, há quem não acredite.  Mas há também quem acredite.  Uma coisa é certa:  se  acreditamos  no  Pai Natal,  então  temos de acreditar que a magia existe...
     Foi  difíci l convencer  o  João  a ir para a cama.  Mas  o  sono acabou por vencer.

     Etelvina  é  empregada na caixa de um estabelecimento  de pronto-a-vestir, onde aufere um ordenado relativamente baixo.
     Daniel,  o marido,  trabalha  como funcionário administrativo numa empresa francesa fabricante de aparelhagem eléctrica.  Uma remuneração razoável tem-lhe permitido garantir à família um nível de vida equilibrado. Aproximam-se, no entanto, tempos difíceis para a empresa, que os franceses pretendem encerrar, transferindo a actividade para outro país.  Esta  situação  traz o Daniel preocu-pado e deprimido.  De  vez  em  quando  senta-se  e  fica  silencioso,  de olhar absorto, como se o tempo tivesse parado.
     Foi assim que a Etelvina, terminada a faina da cozinha, o encontrou na sala, às escuras.  Acendeu a luz e, aparentando um ar natural, sentou-se e começou a falar:
     – O nosso filho vai ter uma desilusão.
     – Uma desilusão porquê?
     – Desilusão com a prenda do Pai Natal. Fui à Escola, à reunião de pais, e a professora distribuiu as cartas que os miúdos lhe escreveram. O nosso pedia-lhe um piano, vê lá tu!  E,  se não pudesse ser o piano, então queria um televisor e um vídeo para o quarto dele.
     – Pois. O piano não há espaço para ele,  o João  compreenderá facilmente. Quanto  ao  resto,  até não seria pedir muito, não fosse a nossa situação actual. Ou melhor, a minha situação...
     – Então sempre se confirma que eles vão fechar?
     – Confirmar,  ainda não se confirma.  Mas a situação é crítica.  Temos dois meses de salários em atraso. No fim do mês pagaram-nos Setembro. E subsídio de Natal, nada! Já despediram quase metade do pessoal fabril. Agora estão a estudar a racionalização da parte administrativa. Não tarda muito que eu esteja no desemprego.
      – Não sejas pessimista.  Não havemos  de chegar a isso.  Deus  é  grande. Deus não há-de permitir.
      – E  não  há-de permitir porquê?  Quantas  centenas  de  empresas  foram encerradas nos últimos anos?  Quantos milhares de trabalhadores ficaram sem emprego? E Deus permitiu. Mais: quantos milhões de crianças morrem de fome e de doença por esse mundo fora? Mesmo aqui na Europa, milhares de crianças são exploradas, prostituídas ou vítimas de pedofilia.  Quantos  jovens  são dizi-mados pela droga e pela SIDA? E Deus não permite isso tudo?
     – Sim, mas...
     – E as guerras?  Seres  humanos chacinam-se uns aos outros porque é pre-ciso manter  o tráfico  de armas.  E Deus continua a permitir.  E o nazismo e os campos de concentração?  O holocausto!  Deus não permitiu? E a barbárie da Inquisição?  Pessoas torturadas e queimadas vivas em nome de Deus!  E Deus não permitiu?
     – Mas o Papa já veio publicamente pedir perdão...
     – Pois é.  Se  alguém  matasse o teu filho  e  viesse  depois pedir perdão, tu perdoavas?
     – Credo, que horror!!
     – Desculpa, não falemos mais nisso.  Mas  só  quero  dizer-te  que  é muito possível eu ficar sem emprego. A não ser que sejamos nós a não permitir. Nós, os trabalhadores.  Unidos.  Tomando  consciência  da nossa força.  Força que afinal temos, mas está adormecida. É preciso voltar a pensar em sermos donos da nossa própria vida.
     – Não fales tão alto. O menino pode acordar e ouvir-nos.
     – Tens razão.
     Seguiu-se um silêncio pesado e embaraçoso, pontilhado pelo ruído do reló-gio da sala, que o Daniel quebrou finalmente:
     – Bem, com algum esforço,  para não dizer sacrifício,  ainda podemos com-prar um televisor pequeno para o quarto do João.  O  vídeo é que já não pode ser. Terá de ficar para outra oportunidade.
     – Que bom!  Assim  o  Pai Nata l já  não  ficará  mal  visto. –  alegrou-se a Etelvina.

     A véspera do dia de Natal foi dominada pelos preparativos da ceia. O João punha e tirava discos com músicas alusivas à quadra.  E  a noite chegou, entre-tanto.
     O João apreciou todas as iguarias,  embora  torcesse  um pouco  o nariz ao tradicional bacalhau. Já o peru repetiu com satisfação, embora aos doces é que ele se atirou com avidez.
     Passava das onze da noite quando os pais resolveram fazer uma saúde com vinho do Porto.  E um brinde especial à esperança no futuro.  O  João  brindou com sumo de ananás.
     – Pronto. – disse a mãe – Já é tarde,  vamos deitar,  amanhã de manhã abri-mos as prendas.
     – Não! – gritou o João –  Eu  espero  pela  meia-noite.  Eu quero ver o Pai Natal!
     E o pai, com paciência:
     – Sabes, o Pai Natal não gosta de ser visto quando anda a trabalhar.
     – Não importa. Eu tenho cinco perguntinhas para lhe fazer.
     – E podes fazê-las.  Levantas-te e fazes  as  perguntas  em  voz alta.  O Pai Natal ouve, mesmo sem estar presente.
     – Ouve, mas não responde.
     – Dá-te a resposta depois. Talvez por escrito. E que perguntas são essas?
     O João, muito sério, pôs-se de pé. Tirou do bolso das calças um papelucho amachucado, onde tinha gatafunhado umas palavras.
     – Primeira pergunta:  é verdade  que  o Pai Natal tem magia?  Segunda per-gunta:  o Pai Nata l lê as cartas de todos os meninos  ou só lê algumas, à sorte? Terceira pergunta: Porque é que o Pai Natal nunca me dá nada do que lhe peço e dá tudo ao Ricardo,  que é  mau estudante,  falta  muito  à  escola e bate nos outros meninos? Quarta pergunta: porque é que o Pai Natal não gosta de mim? Última pergunta: porque é que o Pai Natal só gosta dos meninos ricos?
     Daniel e Etelvina entreolharam-se. Com aquela eles não contavam.
     O João sentara-se, com os cotovelos sobre a mesa e as mãos cerradas segurando a cabeça.
     Daniel levantou-se e dirigiu-se à cozinha.
     – Tenho de ir beber um copo de água.
     Quando vinha  de regresso,  ouviu-se um ruído lá dentro,  qualquer coisa a cair, enquanto o relógio da sala começava a contar as doze badaladas.
     O João deu um salto na cadeira e saiu disparado para a cozinha.
     – O Pai Natal!
     O pai e a mãe seguiram-no, sorridentes.
     – Azar, não cheguei a tempo! – exclamou o João, excitado – Já se foi. Mas deixou cá uma coisa. Uma caixa!
     – Vamos ver o que é – lembrou a mãe.
     Desfizeram a caixa freneticamente. Lá dentro, pasme-se!
     – Um televisor! O Pai Natal trouxe-me um televisor! – fez o João, radiante.
     Continuou, porém, a vasculhar com fúria no fundo da caixa.
     – E o vídeo?  Onde está o vídeo?  Falta o vídeo!  O  raio  do velho não me trouxe o vídeo! Chiça!
     Tiveram muito trabalho para o acalmar. Acabaram por transportar o peque-no televisor para o seu quarto.
     – Pronto. – disse o pai –  O vídeo virá depois.  Havemos nós de comprá-lo. Quando puder ser. Agora já tens o teu televisor.  Ligamo-lo amanhã,  que hoje já é muito tarde.
     – Está bem – concordou o João, sonolento – E também desembrulhamos as prendas da Árvore.

     Foi o pai quem o meteu na cama.  Abraçou-o  e ficou algum tempo a acari-ciá-lo.
     – Pai!
     – Diz lá, filho.
     – Pai, tu acreditas em Deus?
     Daniel embatocou  como  se lhe tivessem dado um murro.  Depois resolveu responder com verdade.
     – Meu filho,  a tua mãe acredita,  mas eu...  Confesso  que  não  acredito lá muito...
     – Fazes bem, pai.
     – Filho!! Porque é que dizes isso?
     O João esboçou um sorriso, meigo e conivente. E murmurou:
     – Eu também não acredito no Pai Natal.
     Daniel não teve mais palavras. Apagou a luz para esconder uma lágrima que lhe aflorava.
     – Até amanhã, filho, e feliz Natal.
     – Feliz Natal, papá.
                                                                                                           Dezembro 2000
CARLOS DOMINGOS
Enviado por CARLOS DOMINGOS em 03/12/2006
Reeditado em 03/12/2006
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