Uma tragédia recifense
Recife; há algum tempo atrás. Já era quase madrugada quando Júlio saiu do bar naquela sexta-feira. Ninguém soube dizer ao certo por que circunstâncias ele decidiu sair mais cedo do que todos, posto que o plano era dali irem a uma dessas casas noturnas que há espalhadas pelo centro e por Boa Viagem. Alguns amigos perceberam que, apesar do grande esforço em parecer sociável, alguma coisa muito estranha o perturbava, por isso acharam por bem não insistir muito. Depois de despedir-se de todos, Júlio pegou a sua mochila e se dirigiu ao ponto do ônibus. Ele era um daqueles típicos homens da periferia, isto é, tinha a pele morena, estatura mediana, gostava de beber com os amigos, falar de mulher, trabalhos, chamar alguns palavrões e essas coisas todas de um jovem de 26 anos.
Como é de costume, o coletivo demorou mais do que deveria, o que fez com que Júlio se sentisse preocupado. Falemos abertamente, este nosso personagem nunca perdia uma boa farra com os amigos nas sextas, só por um motivo de grande gravidade, o que denota que, por algum fator de ordem desconhecida, ele não está no melhor dos dias. Quando o transporte chegou era visível o estado de preocupação em que estava. Suando frio, sentou-se ao lado da janela da cobradora que, vendo que o tipo não estava lá muito bem, perguntou:
-Tá tudo bem, moço?
Júlio assentiu com a cabeça, mas era só por educação, porque, de fato, ela não poderia ajuda-lo muito. Ele fez o possível para disfarçar, mas as dores aumentavam numa proporção ad absurdum. Nunca tinha se sentido assim e era duro ter que admitir isso para si mesmo. É bem verdade dizer que não somos mais os mesmos quando nos defrontamos diante do espelho de nossos próprios medos e vergonhas, e o medo de Júlio era em parecer ridículo, mesmo que soubesse que não era a primeira pessoa no mundo a sentir-se assim; inúmeros casos de pessoas que sofreram acidentes cardiovasculares em coletivos, muitos deles com óbitos, são registrados pela nossa imprensa, quanto mais passar mal, mesmo que se esteja pondo as tripas afora. Mas neste caso era o fôlego, Júlio era hipertenso.
Quando o ônibus parou, pediu para descer pela porta do meio. A rua estava escura, deserta; o vento gélido da noite fazia-o tremer de frio. Se bem fosse noite e a via estivesse bastante sombria, Júlio achou melhor assim. Sua agonia aumentava a cada minuto e, infelizmente ainda teria de subir uma pequena ladeira até chegar a sua casa; não era muito, mas vendo a situação... Bem acertados estão os físicos em dizer que tudo é algo em relação à... Júlio soltou um sincero palavrão e iniciou a subida do seu purgatório.
Passemos para uma rápida descrição: naquela noite a lua não brilhava no céu, isto é, era lua nova; devido ao bairro ser uma zona de periferia, mais da metade dos postes estavam quebrados ou funcionando mal, o que deve dar ideia do quão escuro estava. Beirando a margem esquerda da rua, havia uma grande mata, a qual as pessoas chamavam de sítio da viúva, e da qual se ouviam vários relatos cavernosos. Resumindo, ao que parece tudo estava preparado para o que viria a acontecer.
Cambaleando, Júlio fazia todo esforço que podia para chegar ao seu destino, mas o tempo corre lento para os espíritos em ansiedade. Ele sentia como tivesse subido durante horas, ofegante, sente a necessidade de parar e percebe que ainda não passara nem da metade da ladeira. Em vão, tenta levantar-se mas já não pode com as dores. Num surto de lucidez, Júlio dá-se conta de que não aguentaria mais e que em breve teria que render-se e entregar-se ao devir. Olhando de um lado para o outro ele percebe que está chorando: “por que aqui? Por que logo aqui?” se tão ao menos pudesse evitar ou tornar tudo menos vergonhoso, não importa o quanto evitemos, cedo ou tarde teremos que nos render à lei da vida.
Ao sentir um vento gelado, Júlio reúne o último que lhe resta de suas forças e dirige-se para dentro do sítio da viúva com o intuito de tornar sua situação menos dolorosa. Vá lá que o ambiente não fosse dos melhores, que tivesse fama de esquisito, mas todo lugar era melhor do que estar à vista de todos. Sentindo uns resquícios de forças ele consegue pular um baixo muro e dirigir-se a um lugar mais seguro. Começa a chover. Júlio arrasta-se para debaixo de uma mangueira. E espera. Sabe que agora só uma coisa o aliviaria. E, debaixo daquela mangueira, um monte de imagem veio pela sua cabeça. Sabendo disso, só lhe restava esperar o seu único alívio. Foi quando sentiu os músculos enrijecerem e uma agonia cortante pelo corpo todo, e algo saindo de si. Era o fim de tudo.
Depois de se limpar com uma folha de bananeira, Júlio resmunga alguma coisa e levanta-se. Dá uma olhada paro o bolo fecal ali no chão e pensa: “Tanto dias para ocorrer isso, mas logo numa sexta, é uma merda mesmo!”.