ANGÚSTIA
Quando a campainha chamou pela segunda vez, os três perdigueiros do senhor Marcondes desandaram a latir animados lá no fundo do quintal. Eles já tinham adivinhado que seria dia de festa e por isso, desde a hora do almoço, haviam sido trancados no quartinho das ferramentas para que não amolassem nenhum dos convidados. Dona Penha enxugou a mão gordurosa no avental florido que trazia amarrado à cintura para camuflar a dor empedrada em seu peito. Dessa vez, lembrou-se de desligar o fogão, pois ainda há pouco fora abrir a porta e deixara queimar alguns bolinhos na frigideira. Mesmo com a janela aberta, a temperatura na cozinha estava insuportável e podiam-se ver gotículas de suor brilhando sobre sua pele engelhada. Dona Penha atravessou vagarosamente a ampla sala de jantar, que já se encontrava toda enfeitada para a grande festa. Sentiu náuseas lhe arranhando o estômago ao passar diante daquela enorme mesa guarnecida por uma infinidade de docinhos de brigadeiros e rebuçados de todas as cores e aromas. Só o bolo possuía três andares de muito creme e mau gosto. Sobre a cobertura, além das cerejas e nozes, havia dois cavalos feitos com chocolate branco que puxavam uma espécie de carruagem, na qual seguia um jovem casal apaixonado. Ao abrir a porta, dona Penha viu que se tratava de sua patroa, escondida atrás de vários pacotes de compras:
- Me ajude aqui com isso, criatura! Estava dormindo para não ouvir a campainha? Quando mais se precisa dos serviçais, vocês nos aprontam dessas!
Dona Penha apanhou os dois pacotes maiores em seus braços frágeis de canarinho e não teve ânimo algum para responder à patroa. Há mais de trinta anos servia aquela família como criada, fielmente submissa, zelosa, prestativa. Em todo esse tempo, não possuía recordação de ter sido tratada uma única vez sequer com o mesmo carinho que seus patrões dispensavam aos perdigueiros. Nunca, porém, sentiu-se tentada a abandonar aquele emprego. Sabia qual era o seu lugar naquela casa. No fundo, Deus criou os fâmulos para obedecerem e mesmo nas quintas celestes, rancho agradabilíssimo que ela almejava alcançar um dia, dona Penha não conseguia se ver de outra forma que não servindo aos anjos e santos.
- Você já colocou as bebidas no gelo? Pôs o vinho no freezer? Aposto que não fez nada disso!
- Dona Lia, eu queria lhe falar...
- O gelo, mulher! Se as bebidas não estiverem geladas, os jornais vão ter assunto para um ano!
Sem conseguir dizer o motivo daquela angústia intolerável que fervia viva em seu peito, dona Penha voltou cabisbaixa para a cozinha, derrotada, pensando em como a vida, às vezes, podia ser tão cruel. Tinha-se a impressão de que os deuses sentiam um certo deleite sádico ao rabiscar o destino dos homens com a pena encharcada por tintas de cores sempre amargas, matizadas de vilania. Fosse apenas aquela dor implacável que queimava sem piedade a sua alma cansada, a velha governanta suportaria resignada o quinhão de sofrimento que lhe havia sido destinado pelos tribunais da fortuna. O que lhe inflamava a medula, o que alimentava a sua revolta solitária e sem palavras, era a maneira como os timoneiros do firmamento pareciam capitanear bêbados a nau dos vivos, deitando escárnio e desprezo pela criatura. Não havia respeito algum pela dor alheia. Ainda que lhe faltasse o coração, hoje era dia de festa e dona Penha precisava mostrar-se feliz e atenciosa com os convidados.
- Os guardanapos amarelos são os da sobremesa! Cáspite, quantas vezes tenho de lhe dizer que eles devem ficar desse lado do prato! Os guardanapos das saladas são os brancos, mulher! Eu falo grego por acaso?
- Dona Lia, me desculpe, mas você precisa me ouvir um minuto... eu queria... quero dizer... se a senhora não se importar...
- O lombo!!! O lombo ainda não foi para o forno!... É hoje que eu tenho um troço... você também não lembra de nada!
A empregada baixou a cabeça, procurando disfarçar o pântano morto que havia em seus olhos de barro e foi cuidar do lombo, que seria servido como o prato principal logo após o casamento. O casamento... Quem diria que o pequeno Estevinho estava se casando! Sempre atarefada com a faina diária, metida entre pratos e caçarolas, escovão e ferro de passar roupa, dona Penha nem vira que o menino crescera, que os retratos das paredes foram amarelando calados, que o tempo também passara por aquela casa, na ponta dos pés, enquanto que ela tentava manter o pó longe dos móveis e da tapeçaria, numa batalha inútil e irremediavelmente perdida. Ali chegara há muito, com a missão de cuidar do menino recém-nascido, trazendo rosas verdes na face madura e pétalas de ternura no sorriso bondoso. Tanto Estevinho se afeiçoara à baba, que a patroa não teve como dispensá-la quando o menino já não carecia mais de seus cuidados. Fora dona Penha quem lhe ensinara a desenhar as primeiras letras, ela que pouco sabia rabiscar além do próprio nome. Fora dona Penha quem o levara pela mãozinha insegura até o severo colégio de semi-internato, em seu primeiro dia de aula, numa tarde roxa de chuva fresquíssima. E, sobretudo, fora dona Penha quem educara Estevinho para as lições da vida, lições de caráter, bondade, honestidade, todas essas coisas que não são hauridas pelas cartilhas.
- Espero que você já tenha feito o refresco de caju! Está me ouvindo, mulher?
- Sim, dona Lia, o refresco já está feito. Dona Lia, me perdoe a insistência, mas eu preciso lhe dizer... o meu marido... ele...
- A campainha! E eu aqui de conversa mole com a criadagem! Vá atender, anda... enquanto vou tomar um banho e me vestir. Não posso receber os convidados nesse estado, fedendo como uma capivara...
Sem dizer mais palavra, arrastando sua infinita angústia, dona Penha dirigiu-se para o saguão principal e abriu a porta da entrada. Uma enxurrada de músicos, com seus instrumentos brilhantes, passou a inundar a sala da frente. Apenas um deles fez a gentileza de cumprimentar dona Penha com um leve movimento de cabeça, pois a conhecia de vista. Os outros caminharam para um dos cantos reservados a eles, onde já se encontrava um piano de cauda branco, belíssimo, e puseram-se a afinar os instrumentos musicais, enchendo a casa com ares de festa. Quando todos já haviam entrado, a empregada saiu para a varanda e ficou alguns instantes observando as flores, que sorriam no jardim banhado de sol. Ali o seu velho, companheiro de toda uma vida, um dia trabalhara como jardineiro e plantara naquela terra macia violetas e dálias e amores-perfeitos, que ele cultivava apaixonadamente com seus dedos impregnados de poesia e carinho. As flores continuavam crescendo pelos canteiros, deitando perfume e saudade na brisa branda das tardes. O marido de dona Penha é que não mais podia tornar àquele jardim, onde passara momentos agradabilíssimos, ouvindo a conversa dos pássaros em solos de flautas, admirando a infinidade de matizes roubados ao arco-íris, bucólicas aquarelas que seu braço operoso ajudara a compor, o verde tropical das folhagens coruscantes, o escarlate voluptuoso das rosas pubescentes, a alva candura dos copos-de-leite. Por uns instantes, dona Penha teve a nítida impressão de ver o marido misturado entre as flores, vestindo seu surrado macacão de brim azul, agachado junto a um canteiro de margaridas, próximo ao portão. Porém, quando ela enxugou os olhos molhados no avental e espremeu um pouco suas vistas fraquinhas para enxergar melhor, reparou que era apenas um dos meninos da vizinhança que costumava brincar por ali.
Dona Penha teve vontade de colher uma daquelas florinhas perfumadas, que o esposo tanto amara, a fim de lhe entregar quando ela retornasse para casa, mas teve medo de que não mais o encontrasse vivo e sentiu um calafrio violento como uma machadada. Era cruel. Seu companheiro de toda uma vida morria sozinho num quarto silencioso e ela não podia estar ao seu lado justamente nessa hora decisiva para confortar o seu peito ou simplesmente segurar a sua mão. Daí aquela angústia, aquela dor crepitante... Como seria tudo dali para frente? Não havia mais nada que ela pudesse fazer, a não ser rezar. Rezar e esperar... Durante toda a noite passada, ele ardera em febre, gemendo e botando sangue pela boca. Em outras ocasiões estivera doente, mas desta vez em particular, dona Penha leu no rosto cerrado do médico palavras que não careciam de explicação alguma. Nenhuma esperança.
Aos poucos, os convidados foram chegando, trazendo perfume nos sovacos, língua e estômago, que são as três coisas imprescindíveis para se levar em festas. Os músicos começaram tocar as surradíssimas canções de seu repertório para animar a turma. Lentamente, alguns grupos passaram a se formar na sala; uns já bem alegrinhos e eufóricos, outros, nem tanto. Dona Penha fora incumbida pela patroa para auxiliar os convivas caso alguém precisasse de qualquer coisa e também lhe pediu que fiscalizasse os garçons, para que eles não bebessem escondido pelos cantos ou fossem cair pelados na piscina. Quando o padre que iria oficializar o casamento chegou, muito atrasado por sinal, a animação era tão grande, tamanha era a algazarra produzida pelo excesso de vinho e cerveja, que o casamento mais parecia folia de carnaval. Somente dona Penha não comungava de toda aquela alegria e se conseguia fingir um sorriso frágil no rosto, sorriso mecânico e profissional, sentia asco daquela felicidade estúpida que escarnecia dela e de sua cabal impotência diante de um destino infame.
- Vá pegar mais frutas na geladeira, estaferma! Corte uns dois abacaxis, uns melões, mexa-se...
- Dona Lia, sem querer abusar de sua paciência, mas eu preciso ir...
Nesse momento, porém, um dos convidados chegou de mansinho por trás da mulher, enlaçou suas duas mãos atrevidas nas ancas roliças da anfitriã e a tirou para dançar, deixando a empregada falando sozinha. Definitivamente, a patroa não a ouviria, caso dona Penha não tomasse uma atitude mais impetuosa. Na verdade, se não fosse pelo Estevinho, ela já teria ido embora dali há muito tempo. Mas o menino estava tão feliz, tão luminoso, que ela acreditava não ter o direito de estragar o dia mais importante da vida dele. Entre todos ali, era a única pessoa que havia lhe dirigido a palavra de maneira cortês, pedindo-lhe, inclusive, para guardar um segredo: desde pequeno amava sua noiva e, ainda na época do colégio, prometera a Nossa Senhora que todos os meses daria aos pobres metade de sua mesada caso viesse a se casar com ela um dia.
- Preciso acertar as contas com minha santinha e ver quanto estou devendo, disse gracejando.
Alguém se lembrou de olhar o relógio e comentar com uma certa maldade que a noiva estava mais atrasada do que impunha os costumes de praxe. De fato, as pessoas já estavam notando aquela demora toda. Dona Lia, vermelha como um rabanete, corria de um lado para o outro fingindo aparentar uma tranqüilidade que ela não possuía. Cheio de vinho, o padre esfregava as mãos com impaciência, pronto para raspar-se dali sem casar mais ninguém ou ir meter-se pelado na piscina, enquanto que os músicos tocavam pela milionésima vez as mesmíssimas cançonetas que eles traziam decoradas. Estevinho é que não apresentava o menor sinal de abalo emocional. Nunca duvidara que sua prometida o amava e tinha certeza de que aquele atraso teria alguma explicação plausível. Na certa, o carro alugado para trazer a noiva estaria parado no trânsito ou quem sabe não sofrera um pequeno acidente...
- E os abacaxis, mulher! O que você está fazendo que ainda não cortou esses malditos abacaxis!
- Dona Lia, eu sei que não é um bom momento, mas eu preciso voltar agora para casa... o meu marido... está muito doente... o médico ficou de ir vê-lo... a esta hora já deve estar em casa... desculpe, não posso ficar mais...
Dona Penha falava com a cabeça baixa, voz miudinha e submissa, os olhos destilando sangue, e por isso despercebeu que sua patroa não ouvira uma única palavra de tudo aquilo que ela estava dizendo. Antes, Dona Lia procurou sintonizar seus ouvidos para escutar o que os convidados cochichavam com ares de rara satisfação:
- Estão dizendo que a noiva fugiu com o motorista!
Foi a gota d’água. Dona Lia teve um troço, rodopiou nos calcanhares ultrajados e acabou esparramando no chão o seu desmaio cinematográfico, que os fotógrafos dos jornais adoraram. Deu-se então o maior bochicho, um deus-nos-acuda de fim de feira. Todos falavam ao mesmo tempo querendo dar o seu palpite sobre as causas daquela desgraça. Muitos aproveitaram para achincalhar com a reputação da noiva, aquela vaca, invocando episódios de sua vida desregrada e libertina. Com pólvora nos olhos, o senhor Marcondes, pai do noivo, berrava desguedelhado que iria enfiar a faca do bolo no bucho de quem não respeitasse a honra de sua família. Os fotógrafos adoraram. Como ninguém mais os ouvia mesmo, os músicos calaram seus instrumentos e foram cair pelados na piscina. Aquela balbúrdia toda somente foi interrompida quando o telefone tocou impertinente na sala, feito uma estocada de sabre. Dona Penha caminhou até ele e atendeu com lágrima na voz franzina, adivinhando. Houve um instante de um silêncio cadavérico, silêncio latente de campanário, pois todos assentaram as vistas interrogativas na empregada em busca de informações frescas. Finalmente, após três ou quatro minutos daquela conversa pontuada de sombras, onde dona Penha apenas escutava e ia concordando com os olhos mortos, ela desligou o aparelho com a mesma indolência que teria desligado a própria vida, se pudesse. Apoplético, o senhor Marcondes inquiriu num urro vulcânico:
- Quem era, mulher? Quem era???
- Engano, meu senhor... engano...
E foi até a cozinha cortar algumas frutas, amargas frutas, pensando na vida, no tempo, na solidão, nas trevas, em tudo isso que já não fazia mais sentido algum, agora que seu marido olhava por ela lá das alturas incompreensíveis dos céus eternos.