Dose dupla

Olhava para o relógio. O trem sentido Luz estava atrasado. O último passara há quinze minutos. Os ponteiros marcavam cinco e meia da tarde. Fazia frio. Ventos gelados do Sul acompanhados por uma garoa de resignação bem a gosto de São Paulo cortavam-me o rosto. O que eu mais desejava era chegar à minha casa, tomar um bom café, e deitar-me, ou para ler, ou para escrever, ou para assistir algum filme na televisão.

Abri um dos meus exemplares de George Orwell, lia-o, devorava-o ferozmente. Assim como qualquer leitor, parei a leitura por alguns instantes, e para o nada olhei. Estava refletindo sobre o que tinha lido. Mas desta vez, meu devaneio de olhar solitário não amou o nada e nem retomou a leitura. Não. O meu devaneio de olhar encontrou outro devaneio de olhar. Bem à minha frente, do outro lado do trilho. Ela não tinha livro em suas mãos. Então por que devaneava? Pensando apenas? E por que em minha direção?

O livro, já antes fechado, fora esquecido por mim – não sei como não o deixei no banco da estação - Meu olhar, minha mente, voltava-se em tentar decifrar quem era a bela moça em minha frente e o que ela pensava. A distância não afetou a percepção de seus detalhes. Pude perceber as peculiaridades do rosto, uma boca singela, carnuda e com sede de amar. Um olhar misterioso, cigano, de ressaca. Seus cabelos negros, levemente iluminados com fios castanhos. Havia um brilho no nariz, acho que era um brinco de nariz. Não pude distinguir pela distância. E também porque não parava de olhar sua franja, que com certeza era cortada à mão.

Nunca senti meu coração bater tão forte. Sentia a mão umedecer, um calor voluptuoso subiu pelo tronco até atingir minha face. Mas esta interação por olhar foi cortada pelos vagões vagarosos do trem que chegava à estação. O trem sentido bairro partiu, e lá ela não estava mais. Não se passaram mais de cinco minutos, e o trem, no qual embarcaria rumo à Luz chegou e parti.

Todos os dias sentava-me no mesmo banco, no qual sentei no dia que a vi pela primeira vez. Não a vi mais desde então. O trem sempre atrasava, e mesmo assim ela não estava lá. A não ser por um dia em especial. O trem atrasara como sempre, e lá ela estava. Um pouco diferente. Pelo que me lembro – é importante ressaltar que mesmo dentro de uma cortina de névoa que a distanciava em minha mente, pude reconhecer seu rosto – seu cabelo era menor. Deveria ter cortado. Ela se levantou! Por quê? Cansara de esperar o trem? Não sei, só sei que ela subiu as escadas rolantes sentido à bilheteria da estação. Num movimento frenético e involuntário levantei-me e fiz o mesmo. A estação estava cheia de gente. Ela não era muito alta, na verdade, eu que sou muito alto, mas quase a perdi de vista em meio à multidão. Ela se dirigia ao terminal de ônibus – pela demora poderia ter mudado de ideia em relação ao transporte público, sendo qualquer outro que a levasse a seu destino em menos tempo – não que eu acredite em destino ou em divindade. Não! É tudo papo furado, mas parece que os deuses conspiravam ao meu lado. A escada rolante pifou e ela ficou travada, não pode descer, pois a escada estava repleta de gente. Foi o tempo necessário para alcançá-la e tocar de leve em seu ombro para chamar-lhe a atenção. Foi o que aconteceu. Ela se virou a mim. Disse meia dúzia de palavras e a convenci de ir tomar café comigo numa cafeteria perto dali. No caminho conversamos sobre diversas coisas. Todas inúteis. Conversamos tanto naquele fim de tarde. O café nunca foi tão bom. A fumaça da temperatura da xícara subia e contrasteava com os olhos castanhos dela. Como era bela. A pele branca, o sorriso perfeito com grandes e justapostos dentes, um sorriso largo. O que mais desejava era beijar aqueles lábios, que pareciam macios, com gosto de café! Falamos tanto, não conversamos nada. Nada. Ela carregava consigo um livro. Ela me contou a história. Contou sobre seu trabalho de tradutora de livros em francês. Contei sobre meu trabalho de professor de literatura. Fomos muitos felizes durantes as três horas que passaram.

Nossa ligação tímida na rasteira intimidade que se gerou entre nós foi burlada quando ela olhou em seu relógio. Quase nove horas. Precisava ir. Despediu-se de mim. Fez questão de dividir a conta, deixou três notas de dois reais na mesa junto a um cartão. Beijou-me na bochecha direita e sua imagem foi se esvaindo conforme ela abrira a porta e partia rumo à estação.

O cartão continha seu nome, diferente, inusitado – demorei horas para aprendê-lo - e o telefone do escritório, onde trabalhava.

No dia seguinte liguei para o número. Ela atendeu. Marcamos de almoçarmos juntos. Ela trabalhava num escritório perto da Liberdade. Fui até lá. O mais estranho é que não almoçamos o que eu acharia que iria almoçar. Quando me viu, ela me agarrou e levou-me a um “hotel” ao lado do restaurante. Jogou-me na cama. Estava completamente confuso, apesar de realmente estar querendo almoçar o prato que ela ia me oferecer. Transamos loucamente. A cama bateu tanto na parede que marcou a forma da cabeceira na mesma. Praticamos tantas posições, que o Kama Sutra ficou curto e sem graça. Ela me deixou descansar por apenas cinco minutos, e em cima de mim já estava atiçando-me, esfregando-se, cavalgando, e me fazendo ver estrelas com muito calor e suor de novo.

Como não podia faltar. Este meu personagem, depois de uma transa, precisaria acender um cigarro. Foi o que ele fez.

Acendi um cigarro. Ela me esperou terminar de fumá-lo para se dirigir ao banheiro do quarto. Chamou-me e tomamos banho juntos. Juntos, corpos unidos e molhados, agora não por suor, mas pelas gotas mornas que saiam do chuveiro, formando um único corpo de paixão. Ela precisara voltar ao trabalho, estava meia-hora atrasada.

Essas brincadeiras, essas aventuras, duraram dois meses. Todo santo dia. Na hora do almoço, no hotel da Liberdade e à noite em meu apartamento na Luz. Estávamos apaixonados. Eu, doente de amor. Não conseguia passar uma hora ou duas longe dela. Pensava nela enquanto dava aula. Pensava nela enquanto tomava meu café. Pensava nela enquanto fumava meu cigarro. Pensava nela enquanto lia o livro da vez. Pensava nela quando pegava o trem.

Num dia liguei em seu serviço. Uma voz diferente atendeu. Disse-me para correr se quisesse vê-la, pois o estágio dela em São Paulo tinha acabado e ela viajaria de volta à sua cidade no interior. Corri. Saíra da Luz rumo à Liberdade. Quando cheguei à porta do edifício lá estava ela partindo com uma mala. Parei-a e perguntei por que ia embora sem dizer nada a mim. Ela me respondeu que voltaria à sua cidade, numa região próxima à Araraquara – engraçado que ela não tinha a prosódia do interior, meu “porta” soava muito mais forte do que o dela – e que depois partiria rumo à França para se dedicar à tradução de seu idioma. Insisti por que ela não me avisara antes. Ela me respondeu que fui só uma aventura. Que eu era maluco o bastante de correr atrás dela na estação e que isso a fez despertar interesse por mim. Que eu era interessante e bonito. Mas não era amor. Não! Apenas uma aventura sexual. Uma eventualidade do cotidiano. Disse também que nunca se prenderia a um relacionamento. Fiquei tácito. Beijara-me e partira num táxi.

Nunca mais a vi. A única vez que ouvi falar dela – na verdade, que li sobre ela – foi ao ler seu nome num livro, cuja tradução era sua. Mas a vida voltou ao normal. Continuei pegando o mesmo trem que sempre atrasava, continuei lendo meus livros enquanto esperava o trem atrasado. Até um dia que, enquanto devaneava, vi uma bela moça no outro lado da estação. Ela levantara, subira a escada rolante rumo à bilheteria. Levantei-me e fui atrás dela.

Caique Franchetto
Enviado por Caique Franchetto em 08/07/2011
Código do texto: T3083858
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