O último passageiro
Ao entrar pela porta que dá acesso às escadas rolantes, José Luis percebeu que se encontrava na rodoviária do Tietê. Olhou para seu relógio adiantado, depois mirou o da rodoviária. Estava atrasado. Foi ao guichê da empresa de ônibus em que tinha comprado a passagem de volta para a sua cidade de origem, lá na puta-que-o-pariu. Chegando ao balcãozinho de serragem prensada, pode perceber a bela moça que se encontrava do outro lado daquele vidro ou acrílico, todo arranhado, riscado e com lascas faltantes nas extremidades inferiores. Seu decote era tão, tão erótico que José Luis esqueceu-se do que iria perguntar e o que estaria fazendo em tal lugar. Estava pensando na vontade de afogar naqueles seios rubros, de soltar aqueles cabelos ondulados em forma de coque e possuir aquela mulher.
Estava ali parado, igual a um imbecil, tosco de rosto, até que aquela volúpia de moça, cansada, não vendo a hora de seu expediente se encerrar, perguntou-lhe:
- Posso ajudar, senhor? – Na verdade ela não estava nem um pouco a fim de lhe oferecer qualquer tipo de ajuda.
- Ah... ? Sim, pois não... Nossa... Tenho reservada uma passagem para sei-lá-onde e queria verificar a que horas o ônibus sai.
- Sim senhor, pode-me passar o número de sua passagem? – Que fardo!
- Claro! – Procurou na bolsa que carregava, depois nos bolsos de sua jaqueta, depois nos da calça, a atendente já estava sem nenhum pingo de paciência – Aqui está! O número é nove, zero, zero, zero... – Aquela formosura de moça digitava os números no computador do sistema nem se importando ou prestando atenção se estavam corretos ou não - ... zero, dois, um. Pronto!
- Só um minuto. Aqui está. O ônibus com destino ao fim-do-mundo já saiu há uma hora.
- Mas não pode ser... O que eu faço agora?
- Não sei, meu senhor, não estou nem um pouco interessada.
- Mas a senhorita não pode arrumar outra passagem?
- O próximo ônibus com destino para essa-cidade-esquecida-por-Deus sai às dezoito horas... – Menos mau, daqui à duas horas - ... de amanhã. Só resta uma única passagem. Pode ser?
- Hein? Só amanhã...? Tudo bem, fazer o quê? – O monumento já não aguentava mais ouvir aquela voz idiota, daquele homem idiota e de olhar idiota.
- Tudo certo, então. Aqui está seu comprovante. Posso lhe ajudar em mais alguma coisa? – Não!
- Não, não, não... Posso ficar aqui na rodoviária enquanto espero o ônibus? – A sua cara de pedinte e tristeza implorava compaixão e um teto para passar a noite.
- Sim, meu senhor, pode sim, contanto que fique longe de mim e não me siga quando eu for embora.
- Claro que não! Tudo bem, vou ficar ali encostado no banco – Nisso, na fila já estavam duas pessoas muito impacientes.
- Ok, então me dê licença que tem mais gente na fila. Um bom fim de tarde e boa viagem, até logo – E não pode deixar de dar aquele sorrisinho forçado e falso de aeromoças.
José Luis, coitado, teria que passar a noite na rodoviária, sentindo frio e dormindo num desses bancos de plástico, bastante desconfortáveis. Acredito que o curioso leitor queira saber o que José Luis está fazendo em São Paulo, e sem condições de dormir num hotel. Na verdade, ele veio visitar uma tia doente. Hospedou-se num hotel barato na Sé por dois dias e havia comprado, desde já, a passagem de volta. No primeiro dia na capital, deu algumas voltas pela região central. Foi roubado e levaram-lhe cinquenta reais. O resto do dinheiro que estava na meia serviu para pagar um sanduíche de churrasco grego, nesse mesmo dia visitou a tia e voltou ao “hotel”. Foi dormir por volta das oito da noite. Mas o barulho da cidade não no deixou entregar-se à Morpheu. Então se vestiu, pegou os duzentos reais que estavam numa de suas malas e foi usufruir a noite da cidade da garoa. Foi aí que cometeu seu maior erro. Entrou numa das casinhas-de-luz-vermelha da Sé. Arrumou um rabo de saia, bebeu todas e gastou todos os duzentos reais. Os únicos. O único dinheiro que tinha depois do roubo e do churrasquinho. Voltou ao amanhecer, quase foi atropelado na Avenida Maria Paula pelo trânsito das seis da manhã. Entrou no quarto e deitou-se na cama. Ao acordar, de ressaca, lembrou-se de sua falecida mãezinha e pediu perdão pela noite de libertinagem – quem fez isso foi a personagem, e não eu, este modesto narrador ateu que vos fala. Ou melhor, que voz escreve – vestiu-se, almoçou no restaurante do hotel e quando foi pagar a conta pela estadia, viu que não tinha mais nenhum tostão. Averiguou todas as meias, malas e bolsos. Nada! E o dono, para não sair no prejuízo o fez lavar toda a louça do almoço e dos cafezinhos servidos aos outros hóspedes. Só então pode partir para a rodoviária e daí vocês já sabem.
Então, José Luis estava lá, sentado no banco de plástico a observar todos os movimentos humanos e inumanos que vagavam pela rodoviária. Ali perto se encontrava um mendigo. Não muito sujo, não muito limpo. Quando o mendigo avistou José Luis, correu, literalmente, correu para se sentar ao seu lado. Tentou puxar conversa com José Luis, ofereceu um cigarro a José Luis, ficou olhando com um amigável sorriso esperando respostas de José Luis. E José Luis levantou-se, e sentou-se em outro banco, agora de madeira. Um olhava para o outro, frente a frente, e permaneceram neste estado por horas. Em busca de algo para saciar o tédio ocioso que tomava conta do tempo, o nosso protagonista revirou sua bolsa, retirou um livro do Saramago. Por este lado, José Luis não era tosco, nem idiota, nem imbecil. Leu dez, vinte, trinta páginas, e quando chegou na trigésima primeira, encontrou uma nota de dois reais. A felicidade tomou conta de sua face, seus olhos tiniam ao olhar aquela velha, amassada e enrugada nota. Como ainda eram dez horas da noite e a rodoviária ainda estava cheia, saiu em busca de algum alimento. Comprou um sanduíche de queijo com presunto, uma dose de Rabo-de-Galo e um pingado. Voltou ao seu banco para poder saciar a fome que tomava conta de suas entranhas.
Nestes exatos quinzes muitos em que ceava, começou a reparar nas pessoas que ali estavam ao seu redor. Havia um casal homossexual aos beijos numa das calçadas. Outro casal, só que heterossexual, aos amassos num canto escuro, e não muito longe dele uma moça lendo um desses livros mágicos de fantasias mágicas. E, na sua frente, o mendigo que lambia os beiços ao ver o sanduíche. Não pode deixar de mirar tal mendigo e sua fome, que também o consumia. Levantou-se e foi direto ao coitado, ofereceu o resto de pão que sobrou e a dose por completa da pinga e bebeu o pingado.
- Muito obrigado, meu senhor, que os astros lhe protejam em seu caminho.
- Ainda tem aquele cigarro que me ofereceu antes?
- Sim, tome. Não fumo.
- Então por que o guardou consigo?
- Porque sabia que você estaria aqui.
- Mas como sabia?
- Ouvi sua conversa com aquela beldade de moça sobre sua passagem. Quando você mexeu em sua bolsa, deixou cair um maço vazio e quando vi que um rapaz tinha deixado cair um único câncer num desses bancos, guardei-o para lhe oferecer.
- Muito obrigado, então. Sabe, não sei como matarei o tempo até a hora de meu ônibus.
- Onde você mora?
- Onde-Judas-perdeu-as-botas.
- Ah... O que está lendo?
- Saramago, conhece?
- Sim, já li cinco de suas obras.
- Como leu? Como o conheceu?
- Fui professor.
E os dois ficaram ali conversando por horas. O casal gay se foi. O outro casal entrou num dos ônibus e a moça da mágica magia entrou no banheiro e sumiu. José Luis cochilou, o mendigo começou a ler o livro e amanheceu. Os guichês abriram por volta das oito da manhã, e um pouco antes, aquela moça do começo da história passou para iniciar seu turno. Viu José Luis, continuou caminhando e dirigiu-se ao seu posto de trabalho, lá abriu o sistema e verificou que à meia hora sairia um ônibus com destino a muito-longe, e que havia uma única passagem sobrando. Ela correu até onde se encontrava José Luis e o acordou. O mendigo que estava na metade do livro ficou a observar e não pode deixar de ver seus seios fartos e muito mais rubros que o normal.
- Senhor, senhor, acorde senhor!
- Ah... Sim, sim...
- Tenho ótimas notícias para o senhor, daqui à meia hora tem um ônibus que partirá sentido a sua cidade e consegui colocá-lo neste embarque – Nesta hora José Luis já estava bem acordado e com sorriso de orelha à orelha.
- Mas antes escova estes dentes que o bafo está me matando – disse o mendigo.
- Mas é claro! Como posso agradecer?
José Luis correu para o banheiro, escovou os dentes, os cabelos e a cara por completa, saiu de lá como gente. Foi ao mendigo, agradeceu o cigarro, a companhia e deu-lhe o livro para que o terminasse de ler. O mendigo agradeceu, despediu-se de José Luis que saiu correndo para a fila do ônibus. Quando a moça percebeu que ele já iria embora, foi até ele.
- Desculpe-me se fui grossa com o senhor no começo – Nisso a voz da moça deixou de ser profissional e passou a ser sensual, mas melancólica. José Luis, que de tonto não tinha nada, disse:
- Não me chame de senhor, mas de você.
- Então, quando você voltar para São Paulo, venha me visitar – E deixou um papelzinho no bolso da jaqueta de José Luis – Até logo e boa viagem.
- Despediu-se, e o nosso protagonista ficou ali parado, admirando aquele paraíso em forma humana indo embora num rebolado gingado, desmontando o quadril. Só saiu do transe quando o motorista o chamou e José Luis entrou e sentou-se no lugar indicado pela terceira e nova passagem.
Quando se sentou, José Luis se lembrou do bilhete em seu bolso. Retirou-lhe de lá e começou a lê-lo. Nele havia o telefone e o endereço da moça e uma dedicatória: “Ao meu último passageiro. Com amor. Moça”.