Viagem sem fim

O ônibus estava lotado e o mau cheiro impregnava os bancos aveludados, as roupas e os pensamentos. Buscava refúgio nas janelas que emperradas, me torturavam insistindo em limitar a entrada de ar e como um jegue teimoso, empacavam sem dó.

Teria que conviver com aquilo por dois dias e duas noites inteiras e estávamos apenas com 15 minutos de viagem. Foi um grande exercício de autocontrole mas confesso que era no mínimo assustador ter que atravessar o sertão inteiro dentro daquela privada ambulante, entupida ainda por cima. Aterrorizador e apenas uma frase martelava minha mente “O barato sai caro”. Meio galão de óleo diesel me custou o pesadelo de ter aceitado uma carona naquele veículo de quase meio século de idade.

No ar, além da fumaça amarelada que carregava aquele fétido odor assassino, três rádios ligados no último volume disputavam a audiência. Mal se podiam compreender as letras das músicas, mas se notava que eram bem parecidas. Uma delas repetidamente dizia “quem vai a roça idiota é, perde a carroça e come em pé e se não reclama sujeito bobo é" e pudi contar, pelo menos umas quatrocentas e oitenta e sete vezes. Só compreendi porque o rádio que disparava essa delicada canção, estava a uns dois metros da minha pessoa e era carregado por uma senhorinha de aproximadamente cento e quarenta anos, que não satisfeita, tentava seguir o repetitivo refrão com um sonoro lá lá lá iá a mais de 100 decibéis com um leve sotaque casteliano, balançando-se no ritmo da música frenética.

As poltronas vizinhas e seus ocupantes acompanhavam sincronizados, a senhorinha no seu balançar. Tentei ler alguma coisa, mas as letras de meu livro pareciam ter entrado no ritmo da música, saculejavam, espalhando-se pela página. Restava-me rezar para a próxima parada. Ao menos alguns minutos fora dali valiam mais que um pote de ouro. Levantei-me e fui até o motorista saber onde seria a parada. Obtive a seguinte resposta: ”- se o motor agüentar, daqui a umas 5 horas chegamos na próxima estação” . Não sei se o que mais me atormentou, foi o ponteiro que marcava a temperatura do motor sedento por água parecendo ultrapassar o limite suportável, ou se foi o tamanho da coxa do frango que comia o motorista enquanto dirigia. Agradeci o simpático motorista depois de ter oferecido-me uma asa daquele frango caipira que dizia ele sarcasticamente, ter visto nascer.

No caminho de volta ao meu assento, vi uma das cenas mais incríveis da minha vida. Uma coisa inidentificável se moveu na minha frente. Num primeiro momento pensei ser um extraterrestre. Depois de tudo que houvera passado, não seria nada impossível, afinal a coisa tinha chifres.

Fiquei estático, imóvel com aquele ser incrível. Se virou e me olhou nos olhos. Parecia mastigar um chiclete. Só aí pude constatar. Era um bode!! Sim, um bode estava dentro daquele ônibus. A explicação daquele odor incrível agora começava a ganhar formas. O dono fanático do quadrúpede, notou minha surpresa e orgulhosamente me contou desde como dobrava o animal para caber dentro daquela discreta mala de tamanho normal que o levava, até a origem dos motivos daquela barbicha pintada nas cores do time do grêmio. Meu Deus! Um bode que além de contorcionista era gremista.

A minha conversa com o motorista e com o gaúcho fizeram as horas passarem mais rápidas e chegamos à primeira parada. Um alívio invadiu meu peito pois enfim, poderia desfrutar de outros ares.

Haviam se passado sete horas de viagem aproximadamente sob os mesmos refrões disparados dos poderosos rádios que mesmo na parada, permaneciam ligados. A tal senhorinha com seu balançar frenético nem se quer desceu do ônibus. Não parou um segundo. Valia tudo para não perder a audiência e toda vez que lembrava que ainda restavam por volta de mais quarenta horas de viagem, uma náusea perturbava meu ser.

Uma capa de sujeira havia se formado pela superfície de meu corpo tornando-o duas vezes mais pesado deixando-me ainda mais perturbado. O odor peculiar e os agudos desafinados daquelas músicas tinham penetrado em minhas roupas fazendo-as ganhar vida.

Mudava a perspectiva a fim de tranqüilizar-me tentando focar nas horas passadas e não nas que ainda faltavam. Na brevíssima parada, desci do ônibus, comprei um lanche e tentei acumular o máximo de ar possível em meu peito, antes de me lançar a dentro do veículo novamente.

Quando cheguei a minha poltrona para enfim deliciar-me com um suculento sanduíche, uma surpressa. O bode havia passado por ali e deixado um belo registro de sua existência. Agora, como se não bastasse ter de escutar aquelas músicas, sentir o mau cheiro e tudo mais, teria que aguentar de pé!! por mais quarenta horas! como havia saído caro a viagem.

Meu corpo ficou quente de tanta irritação e não tive escolha senão ter de suportar. A repetida musica da tal senhorinha enfim ganha algum sentido e me senti tocado por aquela canção como se tivesse sido feita pra mim. Me vi desfilando na letra daquela música com um belo sanduíche na mão, em pé rodeado de uma atmosfera desafinada e fétida. Sem saída, e torturado pelo refrão penetrante criei coragem e fui a tal senhorinha implorar cuidadosamente por alguns minutos de silêncio. Foi quando constatei que ela era surda e me respodeu: se quiser pode desligar, eu nem sabia que estava ligado. E segui viagem.

jotacarioca
Enviado por jotacarioca em 04/07/2011
Código do texto: T3075154
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