MESTRE AMBRÓSIO E LAMPIÃO

O dia amanhecera cinzento e frio, o que não era comum no sertão naquele período do ano – setembro já estava quase que em seu final. Mestre Ambrósio, sonolento, caminha sem pressa para o quintal, onde (como em todos os dias) ordenha uma velha vaca leiteira. Mal termina de desapeiar a malhada ele ouve um ruído estranho na estrada. Eram vozes e um barulho de patas de cavalo em um trote acelerado. Curioso Ambrósio corre e sobe na cerca para tentar antecipar do que se trata. No outro lado da mata rala da caatinga ele pode avistar os animais (três ou quatro), que vinham na direção da estrada que passava em frente a sua casa. Quanto às pessoas ele não teve como distinguir. Restou-lhe aguardar.

Avistando Ambrósio os cavaleiros foram freando os animais até riscarem bem próximo de onde estava o Mestre, muito conhecido na região pelo seu ofício de artesão de utensílios em couro.

- “Bom dia Mestre!” (disse um deles)

- “Bom dia!” (respondeu Mestre Ambrósio)

O mestre não pode esperar que o forasteiro continue a conversa e apreensivo emenda a pergunta:

- “Mas do que se trata. Por que essa sangria desatada a essa hora da manhã?”

Um segundo cavaleiro se aproxima e diz:

- “Não tá sabendo? O Capitão Virgulino e seu bando tá vindo nessa direção. Ontem mesmo eles fizeram destroço em Belém e tão vindo pelo Rio do Peixe em busca do Ceará. Nós ‘tamos’ indo até Bujary pra avisar ao Coronel Mendonça, que deve se preparar ou arribar com a família e esconder o que tem antes de perder tudo.”

O terceiro homem, que até então nada dissera, complementa a informação:

- “Passamos ‘inda’ agorinha na Barra do Juá... Não tem um só vivente na Vila. Todo mundo fugiu pra os ‘mato’ levando o que puderam pra não perder.”

Dito isso, os três se despediram do mestre, dizendo não terem tempo a perder e saíram em disparada fazendo poeira e deixando o Velho batedor de sola em cima daquela cerca pensativo.

Chegando a casa ele encontra a mulher já botando uns paus de lenha no fogão. Ela estranha o jeito cabisbaixo do marido que lhe entrega a vasilha do leite sem nada dizer e com o olhar tangente.

- “Que foi ‘homi’ de Deus? Que que tu tem?” (pergunta a esposa)

Ambrósio diz:

- “Muié eu tou aqui pensando... O Capitão Virgulino tá vindo pra essas bandas. Nós num tem nada de valor pra ser levado. Dois véios acabando de morrer com certeza não tem serventia pra ele - nem pra fazer o mal. Já nosso ‘cumpade’ Firlimino, tem muito ‘ricurso’ ... muita coisa de valor em casa. Além das três ‘fias’ bonitas e novas que devem ser protegidas destes cangaceiros sem coração. Sem contar que nosso ‘cumpade’ tem sido a bem dizer o nosso pai esses anos todos de seca. Eu vou é pegar a burra na baixa do estreito e vou lá avisar a ele pra que se previna desse mardito.

Mestre Ambrósio arreiou a Burra cardam e embalou em busca da Fazenda Jenipapeiro para avisar ao compadre e amigo do perigo eminente. Dado o recado, ele volta sem muito se demorar, afinal sua esposa havia ficado em casa sozinha e já estava ficando tarde.

Antes de chegar ao terreiro de sua humilde casa de taipa o mestre vê ao longe um redemoinho de terra e folhagem e gritos que dali só dava pra entender que eram acanalhados.

Mais que depressa ele amarra a burra no oitão da casa e vai à busca da velha companheira que a essa altura já estava tremendo de medo, de joelhos de frente ao oratório no quarto do casal.

Quando de repente ouve um barulho lá fora. Eram eles.

- “Ô de casa!” (grita forte o cangaceiro)

O mestre Ambrósio sai sozinho e pergunta àquele, que de cara ele reconhece como sendo o famoso lampião:

- “No que posso lhe servir capitão?”

O cangaceiro responde grosso:

- “Em nada cabra frouxo. Parei só pra saber se aqui tinha se escondido algum cabra dos ‘cabuêta’ que vem na frente do meu bando alertando quem tem as coisas pra dá sumiço nos pertences... Se eu pego um filho de uma égua desses eu entro pelo fundo dele... Você viu algum por aqui?”

- “Não Sinhô!” (responde trêmulo o mestre)

Nisso entra na sala um dos cabras do bando e diz:

- “Capitão tem ai no oitão da casa uma burra toda arreiada!”

Lampião puxa Ambrósio pelo braço e pergunta:

- “De quem é esse animal?”

Mestre Ambrósio:

- “È meu capitão! Tava pensando em sair nele pra ir fazer uma visita a uma irmã que mora nos Pereiros!”

O cangaceiro encosta a cabeça no peito do animal e sente a pulsação acelerada, o corpo ainda quente e suado da montaria e diz:

- “Cabra mentiroso! Esse bicho veio correndo... e de longe.! A quem tu foi avisar ‘cabra’?"

Mestre Ambrósio:

- Me perdoe capitão! Quando ‘sube’ que vocês ‘tavam’ vindo, eu fui avisar a minha irmã, lá nos Pereiros, ela já é de idade e muito doente. Fiquei com medo dela não resistir a aflição!

O capitão Virgulino Ferreira manda que seus homens procurem algo de valor dentro daquela humilde casa de taipa. Um deles, após vasculhar tudo, sai com alguns recortes de couro cru e um uma chibata trançada – a última encomenda feita ao Mestre Ambrósio que não havia sido entregue ao comprador.

- “Veja meu capitão. Num tem nada de valor!” (exclama o jagunço)

Lampião pegando a chibata que o seu comandado tinha nas mãos, diz:

- Isso aqui tem valor sim... Tira a roupa desse desgraçado!

Com aquela peça de couro cru que o Mestre Ambrósio com tanto zelo trançou, com a dedicação de quem produz o sustento, lampião lhe castigou com cinqüenta lapadas nas costas, que o velho batedor de sola suportou sem alarido.

Após surrar aquele pobre homem o bando parte em dispara fazendo algazarras. O dia que amanhecera cinzento se finda numa chuva torrencial e aquele homem, ferido, abraça a sua esposa que corre pra lhe acudir e sorrindo diz a sua companheira:

- “Enganei aquele peste!”

Mestre Ambrósio fica feliz por ter enganado lampião com a história de uma irmã que nunca teve e ter ajudado ao compadre e amigo que tanto lhe ajudara naqueles anos difíceis.

Damísio Mangueira
Enviado por Damísio Mangueira em 01/07/2011
Reeditado em 02/07/2011
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