1964, de uma sala empoeirada e com cheiro de mofo.
Tantas eram as poesias que lhe passavam pela cabeça; tantas aspirações que tinha para si e, a cada livro terminado, mantinham a incoerência e as promessas que jamais se realizariam. Brigava com o espelho num dia. No outro, conversavam até altas horas da madrugada. Até que sobre seu céu de crisântemos abateu-se um pássaro gigante e maciço. Percorreu com o olhar todo o percurso daquele imponente figurão.
Era o início de um período de extrema disciplina, seguida de tristeza. Convicto nacionalista, porém, a favor de todo e qualquer ser humano, independendo o lugar de origem, viu-se em meio a tiroteios e matanças sem escrúpulo, justificativa convincente, ou mesmo piedade. Sentia em camadas de extrema profundidade quase que a mesma dor que a bala que vira atravessando um compatriota.
Henrique era desprovido de qualquer iniciativa socialista, de revolução e essas coisas tão bonitas de se ler e, até mesmo, ver. Esse tipo de brilho dos olhos não era seu. Os motivos eram outros. Se havia esperança, era na humanidade. Eterno sonhador, com certeza. Mas ao comando da época, isso não configurava menor interesse ou importância. Contra o sistema agora vigente? Então é cadeia, para o senhor, afirmavam os guardas da Avenida Brasil, onde resolveu parar e perguntar o porquê de tamanha violência.
Escapou a ser preso inúmeras vezes. Isso por demorar a digerir o que de fato ocorria ali. Fora-lhe difícil entender que pessoas de uma mesma nacionalidade, mesma língua e território, pudessem, em pleno século XX, confrontar-se de maneira tão abrupta e animalesca. Chegou a pensar, inclusive, que era um terrível pesadelo, tais cenas, e que não passaria de algumas horas para retornar à consciência.
Doía fundo sua úlcera, reclamações vindas do mais puro HCl de seu estômago. Graves reclamações. Sabia que não agüentaria muito sem ir a um hospital. Mas ainda permaneceu, por horas, observando, agora da janela de sua sala, o tiroteio descabido. Os olhos de quem amava acima de qualquer coisa o “ser humano”, desacreditavam. E, além de seu estômago, um aperto forte no peito. Não era possível tamanha brutalidade.
E, ao avistar um jovem de, no máximo, vinte anos, não suportou. Caiu desmaiado no carpete já sujo por semanas sem limpeza.
“Por quê?” você deve estar se perguntando.
Henrique viu naquele jovem, a si próprio, combatendo o Salazarismo, em Portugal, em meados dos anos trinta (mais especificamente, partiu em 1933). Com profundo pesar por deixar sua terra (Brasil) sem saber se voltaria a respirá-la, viu-se motivado a defender a terra de seus pais e, nesta época, primos que ainda estavam por lá. Henrique agüentaria mais uma dessas fora, mas não dentro dos limites de sua terra querida, brasileira, que pensou jamais testemunhar tamanho e assombroso episódio.
Em meio a prantos, a Sra. Henrique de Souza recebe a notícia:
- Desculpe, senhora. Sinto dar essa notícia, mas seu marido já chegou ao hospital sem pulso e não conseguimos reanimá-lo. Ele teve um infarto fulminante e não resistiu.
- Eu sabia que meu Henrique não suportaria – e, sim, ela referia-se à ditadura.
Anos antes, em retorno da terra dos “Lusíadas”
- Que bom retornar… e daqui só saio morto. Deus nos livre, inclusive, de um episódio como o que está havendo em Portugal. Acho que meu coração não agüentaria.
O “pássaro gigante e maciço” fora fruto de sonho. Premonitório, talvez. Traumático, talvez. O que interessa mesmo, é que sua última imagem em território brasileiro não foi digna de um convicto verde-amarelista. Nem de tantos outros.