O Centurião e a Marcomana

"Deus, como eu odeio os marcomanos. Meu pai os odiou antes de mim, assim como meu avô, antes deles arrancarem sua cabeça, deixando-a como banquete para os corvos. Como eu os odeio".

"Eles vêm pilhando, queimando e destruindo tudo o que possam encontrar. Não respeitam nada e ninguém. Se apossam de terras romanas como se isso fosse permitido e algo natural. Mas não hoje".

- Aqui – ele falava alto – às margens do Danúbio livraremos o mundo da existência insignificante e podre dessa tribo. Não haverá piedade, não pode haver e não espere isso deles. Esses covardes à sua frente são os marcomanos. Ah sim, são eles. Um povo cheio de falsos deuses e crenças irracionais. Julgam-se homens mais valorosos que nós romanos, mas mostraremos a eles qual sangue irá manchar o solo hoje. Por fim, não temam esses vigorosos inimigos, mas não se envergonhem de ter medo, deste que esse medo não tome conta de vossos corações. Agora ataquem, ataquem com força, em nome do Imperador Marco Aurélio para Glória de Roma.

A trombeta soou forte, o aquilifer inclinou a aquila à frente, e toda legião se moveu.

Eles continuam gritando e insultando em sua língua bárbara. Parecem não se importarem para o que vai acontecer. São guerreiros exímios tenho que admitir. Não discutem termos, não negociam, a guerra é um prazer para eles. Nossa primeira torrente de flechas já os atingiu. E mais uma. Perderam muitos dos seus, mas nem se importam, continuam a gritar. Como eu os odeio.

Os dois exércitos se chocaram. De um lado os guerreiros marcomanos, representando as tribos germânicas, do outro, legionários romanos do Imperador Marco Aurélio. Os romanos eram menores e mais fracos fisicamente que seus adversários, mas seus equipamentos, treinamentos e táticas compensavam as adversidades e logo a balança começou a tender para o lado dos legionários naquela fria manhã de inverno.

O centurião Lucius avançava feroz na formação partida e já desorganizada dos marcomanos. Ele era impiedoso. Golpeando e ferindo a carne de qualquer inimigo que cruzasse seu caminho. Não muito longe, ele pode ver algo que não via desde a infância:

Ah esse estandarte. Eu me lembro bem. O herdeiro da facção. Hoje já deve ser o líder desses selvagens, mas já deixou um bastardo para assumir seu lugar quando cair. Esse mesmo estandarte estava naquela noite em que queimaram nossa casa. Ainda posso ouvir os gritos de minha mãe em meio às chamas. Como eu os odeio.

Lucius avançou até notar o novo herdeiro. Ele não usava escudo, mas tinha duas espadas, uma em cada mão, e as manejava bem como o romano podia notar. O inimigo dos romanos também notou a presença do centurião, seu elmo o denunciava.

Eles se estudaram a princípio. O marcomano avançou primeiro. Era rápido e tentou usar disto para vencer o romano, mas não foi feliz. Lucius se protegeu com seu largo e pesado escudo e contra-atacou. O marcomano se defendeu do primeiro golpe, mas não pode resistir a investida com o escudo: pendeu para trás e só se deu conta quando estava caído no chão negro e úmido daquela região. Estava sem suas espadas, tentou se arrastar em busca de suas armas, mas sentiu novamente um golpe nas pernas, por sorte fora apenas um chute forte, caiu novamente, mas se levantou rápido desta vez, e com uma das espadas em punho. Virou-se para o romano e tentou mais uma vez, sem sucesso novamente: Lucius defendeu o golpe com sua própria espada e com um golpe rápido e forte acertou o rosto do inimigo com seu escudo. O marcomano foi ao chão mais uma vez. Sentia o nariz sangrar, tudo parecia meio escuro agora, confuso. Seus reflexos estavam lentos, mas ele sabia que a morte chegaria e teria de aceitar.

O centurião gozava daquele momento. Rodeou o adversário afastando dele qualquer arma que pudesse usá-la. Ele retirou seu elmo. Queria que o marcomano visse bem seu rosto, o último que veria em vida. Olhou bem nos olhos do adversário que sem forças mantinha-se no chão. Um pouco de vingança. Enfim havia chegado a hora. Só restava cravar sua gladius na carne do inimigo que ainda o encarava orgulhosamente...

"Não pode ser. Não, isso é impossível". Relutava em acreditar. – Você é uma mulher.

- E isso me faz inferior a você? – retrucou em um latim admirável para um bárbaro.

Ele não disse mais nada, só admirava-a incrédulo. Uma mulher? Uma guerreira marcomana? Não. Meus olhos só podem estar me traindo. Não, não estão. Só agora percebo: sem aquelas barbas amareladas, sem cicatrizes no rosto e um jeito que não consigo compreender.

O centurião guardou sua espada na bainha e tomou a mulher em seus braços. Deixou seu elmo e escudo para trás, eles não eram importantes agora. Seus homens já perseguiam o inimigo que fugia desesperado ao mundo. Logo seus pertences seriam recolhidos e devolvidos intactos pelos homens responsáveis. O que importava para o centurião era levá-la do campo de batalha. Não como troféu pela vitória ou simples espólio.

A mulher não relutou em ser levada, e nem queria resistir. Fora tomada pelo mesmo sentimento que ele assim que seus olhos se fixaram um no outro. Cansada dormiu ainda nos braços do romano.

Agora, já em sua barraca, longe do frenesi do combate Lucius observava atento o sono da mulher que sequer sabia o nome. Havia lavado seu rosto e cuidado de seus ferimentos.

Não pode ser. Logo eu que pedi aos meus homens impiedade para com inimigo sou ferido pelo mais impiedoso dos sentimentos. Ali, deitada dormindo é algo que nem o maior dos artistas pode recriar. Sei que por detrás daquele olhar e deste rosto mais belo que a própria Roma se esconde o mesmo bárbaro que polui cada canto em que pisa, mesmo assim, pareço enfeitiçado por ela. "Ut quid?"

Ele não tinha a resposta, tão pouco buscava por ela, mas todo aquele ódio se foi.

Adalberto Vargas
Enviado por Adalberto Vargas em 29/06/2011
Código do texto: T3064992
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