ATO INUSITADO NO CEMITÉRIO - 26/06/2011 LIA LÚCIA DE SÁ LEITÃO -

As vezes a gente acorda com um sentimento de que não adianta seguir o dia sem escrever, pintar, bordar, cozinhar, algo prazeroso para o final de semana.

Faz dias que tenho necessidade de escrever um texto que aconteceu de vero vero no Cemitério de Sato Amaro, em Recife, no sepultamento de uma dessas pessoas que mesmo que não seja amigo íntimo, nem conhecido de bar, nem se mantenha nenhum vínculo de vizinhança ou cordialidade todos se fazem presentes.

Mas, dessas pessoas que a morte chega, não pede licença, leva e causa uma comoção social. E tudo aconteceu como se a celebridade jamais saísse dos nossos pensamentos tipo Airton Sena e a vinheta na TV nos desperta para uma dor nacional. Mas nem dava para tanto, a dor era regional, era uma dor pernambucana, mas era uma vida ceifada com brilhos de celebridade.

As redes televisivas mais importantes do pais procuravam estacionar aquelas camionetes super equipadas de antenas, jornalistas a todo instante entravam no ar e cada um que avaliasse quantitativamente o número de pessoas no pátio externo ao velório, outros conversando em barracas próximas, até mesmo uns tantos mentirosos que se faziam amigos íntimos, criavam costumes para o defunto célebre e bebia cachaça enfatizando causos de infância e adolescência nunca vivenciados pelo finado.

Uma fila de empurra empurra enorme seguia formada em frente de outra rede de TV que contabilizava milhares de pessoas reverenciando em um último adeus o corpo inerte de um filho tão querido.

Vale apena salientar que os amigos ricos, a corte política, a nata da sociedade recifense e olindense, inclusive os representantes do povo de direita, de esquerda, de centrão de todos os lados e partidos estavam ali para tirar uma pitada dos olhares do povão. O que na verdade mais contava naquela hora era a solidariedade de não perder a cena e estar ali, sérios com o semblante contrito em pejo.

Entre um olhar e outro, uma puxada na gravata, o passar de lenço no suor da testa estava estampado o pensamento que deviam enterrar, OPS! Sepultar o finado de uma vez por todas!

Aquela gente engravatada olhava a entrada da Capela, o portão que se abria para a rua e praça e o olhar era sem dúvidas de ai meu Deus quanta gente pra ver o já desencarnado!

Amigos leitores, aqui entra a minha participação naquele ato de solidariedade humana, sentada num banco da família, mais uma ilustre desconhecida, creiam fiz figura.

Estava vestida num tallieur azul marinho com arremates brancos e botões cobertos com tecido branco, um chapéu discreto com uma rosa de cetim no mesmo tom da roupa, óculos, perfume, bolsa e sapatos Salvatore Ferragamo só um evento assim propicia tal arrumação sem sombra de dúvidas chiquérrima, principesca.

Caro leitor pode imaginar a cena? Uma ilustre desconhecida chamando a atenção dos jornalistas que se aproximavam para perguntar: e a Senhora como vê essa perda para a cultura de um Estado quiçá do nosso país? Delicadamente e educadamente eu respondia taciturna, a morte é cruedelíssima mas recompensa o homem com a História.

Os questionamentos não paravam, eu estava mais solicitada no ambiente que os literatos, escritores, jornalistas, cineastas, políticos, freiras e padres até mesmo parente de bispo que estava dando apoio a família.

Acreditem! Todas as informações eram comigo até recebi as condolências dos mais desavisados que eu.

Verdadeiramente chegou uma hora que eu mesma não sabia se seria vantajoso ou não aproveitar a situação de tantos repórteres ao meu redor,credo! Pensei! Sou a celebridade assistente de defunto! Posso dar alguma informação sobre o meu cursinho dizer calmamente no mesmo tom de pesar, senhores agradeço ao finado intelectual, amigo querido e conselheiro fiel que eu em nome do cursinho preparatório para concursos, vestibulares que hoje tem tradição em Língua Portuguesa e Redação graças ao apoio e elogios que sempre me dispendeu, assim sendo fui a melhor nas notas e aprovações pelo Brasil! Isso não era mentira sempre galguei um público seleto e sempre obtive resultados satisfatórios com meus méritos de professora. Mas credo! Usar desse artifício para ir no jornal das oito passava das minhas contas. Pensei, Céus! Que horror divulgar em rede nacional o cursinho nas costas do defunto!

Fiquei assombrada com a minha astúcia e parei de dar entrevistas, alegava que estava ali na capela esperando a Missa das 17:00h, mas jornalista é uma fuinha um apontava ao outro a presença daquela mulher enigmática, eu.

Já estava ficando angustiada com tudo aquilo mas queria seguir até o final e ver no que ia acontecer, enfim, abri a tranca de um terço de ouro que usava como corrente, fiquei mais chique e rezei contrita com os olhos semi fechados uns trezentos rosários para me deixarem em paz. Ali eu também era espectadora.

Finalmente para meu alívio e de muitos encasacados políticos chegou a hora do sepultamento, os seres vivos que estava ali na Capela foram juntos com a família, enquanto isso o povaréu subia nos mausoléus dos ricos, nas árvores, nos postes, gritavam, urravam davam histéricos, sabe como se comporta o povaréu em evento de celebridades? Pois é sem menor respeito, comem pipocas, pitombas, bebem pinga, tocam músicas e cantam sucessos como se o defunto ouvisse as homenagens.

Assim em meio ao vozerio que mais parecem escândalos se atropelam para acenar e sorrir banguelos diante das câmeras de TV.

Cabisbaixos os da capela seguiam em um silêncio sepulcral, e o povão na zueira, finalmente, o ataúde passou em cortejo silencioso em direção ao mausoléu da família secular. Ainda ouvi alguém gritar olha lá vai passando o caixão pra gaveta daquela coisa preta cheia de anjos, quase chorei, mausoléu versus cova, ataúde versus caixão, sepultamento versus enterro. Ali estava a língua portuguesa inculta e bela como dizia o poeta.

Eu fiquei mais perto do defunto, ops! Do desencarnado célebre, que a família, sai me esgueirando não podia perder nada aquela altura do campeonato!

Olhei para o céu sem nuvens, de um azul inocente e vi os helicópteros fazendo toda a cobertura, ao lado, fotógrafos, povo, bandeiras de Pernambuco, bandeiras do Brasil estava também a bandeira do time preferido do finado.

O Arcebispo falou bonito sobre o céu, o Pastor dos ricos tomou a palavra do Bispo e falou mais bonito na remissão dos pecados, o Pai de Santo não falou porque se perdeu no meio daquela multidão o Guia Espiritual apenas disse que seu espírito seria encaminhado pela luz do Sol. Também foi emocionante.

Hora da maior comoção, o sepultamento!

A viúva se escorava no ombro do filho mais velho que amparava a esposa, uma mulher nova com o olhar viperino.

Eu acreditava que não ia parar ali todas as misancenes.

Um repórter de uma TV subiu no que se chama construção das gavetas, um local próximo, mais elevado tipo um condomínio de esqueletos e corpos. Estruturas recém construídas pela Prefeitura para dar pouso de três anos aos defuntos populares. O homem finalmente organizou-se em cima daquela laje, mas algo em mim sabia que algo aconteceria.

Faltava a última pá de cimento fechando, lacrando e defunto em sua morada, ouvimos em meio aquele silêncio um grito aterrador e um barulho de demolição abafado.

Quando olhei o repórter da laje vi uma poeira subir, um mau cheiro infernal vindo com o vento, quanto todos procuravam o local do fato. Apontei para cima e ali voltava o câmera. A cena era dantesca porém cinematográfica. Cabelos arrepiados, sujo, com ares de espanto, segurando um osso na mão e gritando para o jornalista que a tudo espiava segurando o microfone e às gargalhadas. PENSEI INDIGNADA. Falta de respeito!

O Câmera na verdade tinha se organizado para o melhor ângulo de cobertura de filmagem por toda a região que interessava no Cemitério, mais parecia um franco atirador quando a laje cedeu com o seu peso, o pobre homem desceu três gavetas e se deparou com corpos molhados e ossos. Pelo final da cerimônia da celebridade, o tal cinegrafista não perdeu as cenas principais, a não ser a própria queda que não foi para o ar no jornal das oito.

O povo fez que não viu, o povão vaiou, eu fiquei esperando uma folga para me dirigir até o local queria ver de perto o salseiro.

O povo chique foi se despedindo, o cemitério foi ficando mais silencioso, e eu consegui chegar no condomínio das gavetas. Tomei o terço nas mãos parei diante de uma das gavetas e me concentrei, rezei, os jornalistas não mais me viam, passavam falantes, outros rindo, ainda uns assustados com a quantidade de gente que foi se despedir do finado.

Olho meio enviesado pelo canto dos óculos, lá vem meu alvo, com a calça toda melada de um suco marrom e preto, um mal cheiro sem medidas, procurando uma torneira para se limpar porque dali seguiria a um restaurante bem chique da cidade para receber uma premiação internacional da cobertura jornalística sobre a violência urbana

O homem ficou de cuecas, e eu rezando e olhando, a torneira estava a uns 5 metros de distância, o jornalista desviando o povo para outra rua, o rapaz lavou as pernas das calças, passou a mão molhada no rosto e cabelos, vestiu-se usou o perfume de uma moça que não controlava as gargalhadas e seguiu no carro de uma famosa rede televisiva para a consagração do seu prêmio.

Lia Lúcia de Sá Leitão
Enviado por Lia Lúcia de Sá Leitão em 26/06/2011
Reeditado em 26/06/2011
Código do texto: T3058381
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