AINDA SOMOS SEIS MAS JÁ FOMOS FELIZES - Parte I - Cap. II
Parte I
Capítulo II
Apresentando os seis, por ordem de nascimento.
1.963 - Isabel
Eu sou assim, desse jeito, antes mesmo de nascer.
Dei trabalho, a mãe quase morre e eu também.
Mas não morri.
Como gosto de pensar, já estava era treinando para a vida, só que não sabia.
Resistente, insistente, persistente, estou aqui pro que der e vier, e olha que o que dá e vem não é mole não.
Acho que eu era feia, por que é difícil gostar do feio e eu acho que não gostavam muito de mim.
Acho que esperaram maçã e veio araticum.
Fui crescendo na marra, feia, magricela, cinzenta, olho insondável, por que eu não queria que soubessem de mim como eu sabia deles.
Depois, fui a pouco e pouco, entendendo que quem não gostava de mim era a mãe.
Talvez por que tinha quase morrido pra que eu nascesse, talvez por que logo depois nasceu o meu irmão tão lindo e diferente de mim.
Ah!, mas o pai gostava de mim e eu me lembro de muita coisa que ele fazia pra mim, como a engenhoca que eu não sei o nome e que eu encontrei dentro de um saco de cimento atrás da máquina de costura da mãe e eu quase estourei de alegria por que era pra mim e então eu passava o dia todo empurrando a engenhoca e vendo as manivelas girarem de um lado e do outro numa lindeza só.
Lembro também do sapatinho preto de verniz com saltinho e tudo que o pai tinha trazido pra mim lá de Divinópolis, uma pena não ter servido, eu, por mim, tinha cortado os dedos dos pés, de que me valiam se me impediam de usar o sapatinho?
Quando a mãe adoeceu e foi pra casa da avó, em outra cidade, eu também fui e tinha que pegar o ônibus pra ir pra escola na minha cidade que eu deixara pra trás.
Era o primeiro ano, mas eu me sentia a própria professora, pegando o ônibus dos estudantes.
Quando terminava a aula, já era hora do almoço e eu ia com o pai lá no Bar do Pinheiro. Eu não falava nada, mas morria de alegria quando chegava o prato com aquele bife do tamanho dele e era só meu.
Um dia, a mãe quis fazer um vestido pra mim e eu aproveitei.
"Quero um que balança pra lá e pra cá quando eu andar."
A mãe custou, mas descobriu que era pra ser godê e eu me sentia rainha andando pela rua com o meu lindo vestido godê balançando pra lá e pra cá. Na minha imaginação ele "varria" a rua toda.
Eu dei birra mesmo, finquei pé, não abri mão, queria coroar Nossa Senhora. E não é que consegui? Quase morro quando a mãe da mãe, a minha avó mais querida, chegou com o vestido de cetim azul que era de anjo - assim elas diziam, mas eu sabia que não era de anjo coisa nenhuma, era meu mesmo porque não tinha as asas.
Por que será que ninguém se lembrou das asas? Mas tudo bem, por que não era preciso voar, só mesmo subir as escadas do palco montado ao lado do altar e lá estava eu, desafinando a minha voz e coroando a Virgem Maria.
Quando eu desci, o pai "tava" lá, ao pé da escada, dando bombom pra anjaiada toda e nenhum outro pai tinha feito aquilo.
Foi aí que eu descobri que ele "tava" orgulhoso e era de mim e então esqueci de vez das asas.
1.965 - Tarcísio
Palavra cruzada, forquinha, livros.
Esse o arsenal do irmão número um, depois de mim era ele.
Bonitinho mesmo, tinha que ver!
Todo gordinho de carnes, cabelinho Paulo Sérgio, botinha Roberto Carlos, camisa de renda - uma branca e uma bege - a mãe arrumava mais ele do que eu.
Desde sempre todo sério, compenetrado.
Acho que gostava de mim.
A gente conversava muito, gastando vocabulário.
Um dia eu "tava" lá, gastando...filosoficamente, psicologicamente, teologicamente... tantos mentes que ele "zuou" - "bostologicamente falando" - dei risada. Muita.
Eu gostava que ele não queria sair de casa, assim o pai me levava sempre, que eu sim, era amante de uma boa noitada. Ainda sou, só não posso mais.
Tarcísio, que podia ter virado Cizinho, Tatá, Cirso, continuou foi Tarcísio mesmo.
Ainda hoje é Tarcísio, sério, compenetrado, cabelo cortado à lá Leão, o nosso pai, sequinho de carnes, botina de carpinteiro, camisa agora é de malha mesmo.
Palavra cruzada, forquinha, livro...será?
Não. Não mais. Ele dorme.
O pai gostava dele. Na verdade, acho que o pai tinha era vocação pra gostar.
Deu pra ele bicicleta, relógio, calculadora.
Também que ele não parou de estudar. Um ás na matemática.
Na formatura o pai quis emprestar o terno. Não deu. Tinha crescido demais.
O pai ficou orgulhoso e não era pra menos, por que o filho era bom.
Humilde, caridoso, honesto, quieto.
Não é que não tenha aprontado não. Aprontou, mas foi de pouca monta ou de quase nenhuma repercussão.
Ele também não sabia que treinava pra viver. Muita responsabilidade, família grande, Deus abençõe!
Êta mano inteligente, esse!
Se não ajuda, não atrapalha - esse o seu lema.
Mas um dia eu o lembrei de que a linha que separa a discrição da indiferença é bem fininha, fio de cabelo, quase não se vê.
Se o mundo é curral, a gente é gado.
Uns dão carne, outros leite, outros, ossos.
Esse meu mano dá é o couro.
De sol a sol.
1.967 Simone
Simone?
AoooooooooooooooooooooooooooooooooooSKIMONE!!!
Lá vai a Simone e a molecada atrás gritando.
O uniforme da vida era camisão amarelo, calça Adidas azul com listras brancas dos lados e tênis.
É ainda meio mistério, por que das reinações dela, nós outros não fazíamos parte não, só os colegas mesmo.
Andava cedo, o dia todo, relógio era o estômago.
A melô da cristura: "paraíba masculina, mulé macho, sim senhor."
Em casa era a do meio e batia sozinha nos outros cinco juntos, um assombro de brabeza.
Ela também não sabia que treinava pra bater mais tarde, por que a vida é dura.
O pai ia bater? Ela rasgava o verbo, entregava todo mundo e ficava assistindo o xilep, xilep da cinta na cacunda dos coitados.
Andava pelos parques, circos, acampamentos ciganos e tinha até gang.
Peitava até o pai, que mais parecia maria-mole com ela - também, era branquinha feito porcelana - deve que o sol tinha medo dela também - uns cabelos lisinhos cor de mel, os olhos grandes, castanhos bem claros. Uma lindeza!
Desfilou na passarela da meninice com a cabeça lá no alto do seu perpétuo metro e meio até que caiu no degrau da adolescência desconcertante.
Tirou o uniforme, rasgou a brabeza e ficou doce, bem docinha, apaixonada.
Pena que o domador usava chicote e foi deixando as marcas tatuadas naquela alma indomada.
Mas..."peraí". Essa é a Simone Skimone! Levantou, sacudiu a poeira, deu a volta por cima - não sei bem do que ou de quem - e não perdeu o rítmo nem o compasso.
Se chorou, ninguém viu.
Agora anda por aí, metro e meio, cabelo cor de mel, olho castanho bem clarinho, branquinha, uma lindeza. Ou será tigresa?
A passarela agora é outra. O uniforma também.
O coração eu não sei, nem perguntei, mas também o que adiantava? Se eu perguntasse, ela diria:
"Não é da sua conta nem de ninguém."
1.969 - Alex
1.970 _ Wilian
Todo mundo chamava assim. "Os dois pequenos." Lequinho e Lilinho.
Havia uma diferença pouca de ano e dezeseis dias que nem dava pra notar, principalmente por que o mais velho, o Lequinho, nascera de sete meses.
Todo mundo pensava que eram gêmeos.
"Dois Pequenos" era sinônimo de arte, de traquinagem, bagunça, confusão, infância.
A mãe dizia que os dois valiam pelos outros três, vezes três.
Reinavam o dia todinho, sem parar. Nunca vi duas cabeças pensarem tão bem assim, era espuleta!
Pé de fruta, não escapa nenhum. Era só ver cachorro fazendo na rua, cruzavam logo os dedos pra encalhar o pobre. Atrás dos muros, esperavam escondidinhos e...zás. Nem sei como eram convidados para a festa anual de São Cosme e São Damião - dona Nhanhá, coitada, uma santa! E era de festa que gostavam mesmo. Quando não tinha, inventavam. Até enterro de passarinho virava festa. Guerrinha de mamona verde, banho de chuva embaixo da calha d'água, uma gritaria, mil pulos de pura alegria e liberdade. Depois era desfilar na enxurrada pra lá e pra cá, até que um dia...ai Jesus, oito pontos num pé tão pequeno, do Lequinho, é claro, que esse sim, tinha muita intimidade com uma agulha, seu rosto não deixava mentir.
Na andança diária eram arqueólogos, acharam até "osso de dinossauro"! Fora o "muro dos escravos", a beira do açude traiçoeiro, ninhos de Chico-pauzinho, João-de-barro, o tantão de doce no bar, com o pai, jogando sinuca.
A mãe do pai - a outra avó - andava meio doida. Sumira a caixa de chocolate sem deixar rastro, e a casa estava toda fechada. Isso que era desimaginação! Nem desconfiou do alçapão do forro abaixo do terlhado. Esconderijo assim, nem Lampião!
O pai não perdoava muito não, era bom de cinta e de joelhos no caroço de milho ou de feijão. Era um chororô, os "dois pequenos" de joelhos, com as mãozinhas postas e as lágrimas descendo - "pelo amor de Deus, pai, num bate não que a gente nunca mais que faz outra vez" - mas o pai era "durão", não tinha escapatória - "vocês roubaram." Aí era os dois unidos na dor, combinando matar uns dez, um por minuto, por que dez minutos depois já "tavam" na zoeira de novo, chibatada nem ardia mais, coração solto, sem grilhões, que a infância era pequena e as algemas eram grandes - sem jeito.
Difícil mesmo foi o dia que fizeram no penico e zuniram com ele no quintal da vizinha, que só foi chegar em casa, pronto, entregou tudo e aí até o sol achou por bem ir dormir mais cedo, por que a coisa ia "feder". - mais.
Eram tantas, uma atrás da outra, que o povo nem percebia que eles cresciam.
Um dia, assim, no susto, "cadê" Lequinho e Lilinho?
Tinha sobrado apenas Alex e Wilian, dois irmãos, os "dois pequenos", que n'algum segundo vital da vida, despiram a infância e vestiram a arrogância - tanta! - e deixaram de ser irmãos.
1.974 - Patrícia
Deus do céu!
De onde foi que saiu isso?
A menina se chamava Patrícia, devia ter virado Tricia, Ciça, Tiça, Pat, sei lá...mas lá na casa virou mesmo foi Tição.
Magrinha, moreninha jambo, cabelos corridos de índia, pretinhos azeviche, uns olhos de jabuticaba gigante. Era uma formozura.
É pena que a mãe morreu e nem viu o tanto que ela era linda.
Caçula. O pai virou ela num xodó. Ninguém toca, é cristal, quebra.
Ah!, quebra! Quebra o couro dos outros, por que tamanho não tinha, só língua, e essa falava mesmo. Entregava tudo e todo mundo. Fofoqueira.
Achjo que não tinha boneca também não. Brincava nem sei de que. Acho que de espiar, bispar a vida dos outros. Encrenqueira por demais. Até hoje.
Também andou lutando desde que nasceu.
Rebelde sem causa, com causa, não importava. Queria mesmo era rebelar.
Um dia - que eu achei um dia sem jeito - me perguntou como tinha sido a mãe. Fiquei sem resposta. Era como se de repente eu mesma tivesse perdido a memória. Fiquei com uma pena danada mesmo. Em mim doía a mãe ter morrido, mas eu sabia como ela era, sabia a sua cor, a sua voz, o seu cheiro, o seu jeito...
Mas ela não. Não sabia nada. Não lembrava nada.
Quando a mãe morreu ela era muito pequena, não tinha nem dois anos ainda.
Senti ela assim, meio que analfabeta diante de uma carta.
Analfabeta de mãe.
Vidinha mais triste! Não bastava ser Tição, também não lembrava da mãe. Aí, o pai vai lá e morre também.
Pronto. "Tava" feito. Cadê Deus? Tição "tava" precisando d'Ele. De manhã tinha o pai. Dormiu. Quando acordou, não tinha mais.
Fazer o quê? Crescer? Não dava não, só tinha dez anos. Continuar criança? Não dava mais. Criança brinca, não fica sentada na escada da porta da sala "quentando" sol e consolando saudade.
O jeito foi inventar de viver. Um caos.
Nem deu conta de ser mãe. Não tinha aprendido.
Tem coisas que vai no instinto, mas o instinto dela era só não morrer, nem de saudade, nem de tristeza.
Amar, perder, amar, perder, amar, perder...assim o tum-tum do coração do Tição.
Aí, um dia ela decidiu.
"É pra perder? Então, pra que amar? Não gosto de perder, o melhor é dar logo."
E assim fez.
Deu tudo que era afeto.
Ficou sem nenhum.
Nota: Skimone era uma marca de picolé vendido na cidade, naquela época, e a Simone, por uns tempos, empurrava um carrinho desse picolé, como vendedora do mesmo.