Ouço grilos lá fora.
Depois do sonho que teve, começa dizendo que está com fome, e que não sabe quem ou o que estará ao final destas linhas. Sentado no banheiro, tentando defecar, ares estranhos subiram-lhe até o meio das vísceras, até a garganta subiram apenas ruídos, como se apenas a garganta os produzisse. Está diante de um ambiente deliciosamente silencioso neste exato momento e que pára para ouvir o inominável som do pequeno relógio, a que alguns chamam de tique-taque. O barulho do inominável é o que o faz adormecer muitas noites, quando o corpo pede repouso e a mente ferve em revoluções. O silêncio quase total do ambiente é bom, lhe traz paz, ao mesmo tempo em que o coloca de frente para tudo aquilo que acabou de vivenciar na primeira pessoa, por isso este caminho em pessoa diferente, entendem?
Alguns passos à direita, girando-se sobre o tronco mais ou menos em 180º e deitando sobre a cama, está o cobertor que o lembra do frio que sentiu logo ao despertar um tanto mais decididamente – sim, decididamente, pois estava em verdade semidesperto, indo e vindo em um misto de sonho, desejo, pensamentos, perguntas, pendências, problemas, medos, inquietações, cálculos, (Mas por que não poderás ir à aula? Ah sim, então descanse. Não, que é isso, sem problema, primeiro a tua saúde, depois a gente vê os passos da dança de hoje), lembranças, vontades, sentimentos, sim, sentimentos, palavra rara no rol do que listar e que muito fortemente se manifestou, além de tudo isso e das reminiscências de ter assistido àquele filme. – Preferiu sentir os pequenos instantes de frio a usar o cobertor, que só pegou do guarda-roupa ao levantar da cama, e o estendeu, e agora o olha de vez em quando, certo de que o clima não está para uso de cobertores e que a palavra mais adequada em sintonia com seu corpo foi mesmo esta: arrepios. Nessas horas se aconchegava em posição fetal, embora a isto lhe tenha desaconselhado, há alguns dias, uma ex-namorada espírita.
Ainda lhe está fresca na mente a sensação de incômodo da touceira de espinhos a, volta e meia, roçar-lhe a cabeça como se cabelos seus o fossem, e como tanto buscasse afastá-la de si, como franja lhe caíssem aos olhos, e como areia dentro dos olhos lhe incomodassem, e como a um demônio – e em nome de Deus - enxotasse, certo de que fosse uma espécie de magia negra, feitiço, qualquer ação com malévolo intuito e realizada a distância, com o intuito de lhe perturbar, e ao enxotar a isso, a trança de espinhos lhe doessem mais, e como que marteladas em madeira muito rente ou próxima e acima de sua cabeça lhe martelassem também. Sentiu como se aquilo fosse resposta consciente à ação de enxotar o demônio. Isso lhe deu certo pavor, o tanto necessário para despertar um pouco mais.
Há três noites que não dorme direito e acabou (Como é bom esse silêncio entrecruzado apenas pelo vai-e-vem dos dedos e dos ponteiros do pequeno amigo) de cancelar, ainda agora, ao telefone, a aula de tango. Sim, está com problemas, tudo ao mesmo tempo não alarmante e necessitado de melhoria. O que estará lhe passando pelo corpo, que não ejacula nem defeca nem se alimenta direito? E pela mente, perdida em tantas excitações, fantasias, preocupações, incoerências e vontade de evolução? E pela alma, que não sabe ainda se das essências do corpo ou da mente tem se nutrido (ou fragilizado) mais? Sem respostas, suspira segurando o queixo sobre os dentes pressionados entre si – descarta a hipótese de bruxismo, mas não a de algum ismo – e pensa que o dia hoje passou como uma nuvem da qual ficará muita saudade pela chuva que não desceu. Quem desce agora é a noite, devagar e senhora de todos.
Prometeu a si mesmo que hoje, se não repousar o suficiente, buscará um médico que lhe explique por que não dormir. (Sim, doutor, está levando a sério o tratamento e por isso mesmo lhe preocupa que, mesmo sem uma única gota de álcool, esteja com algo interno tão desregulado no momento, que se espelha e espalha na alimentação, no sexo, no sono, no ambiente, na vida, na vida, na vida, compreende?). É bem provável que, caso não durma, não procurará o doutor – pensa que já viveu tempo demais em hospitais quando criança e adolescente – mas crê no poder da autoafirmação e que algo precisa ser feito, um banho de descarrego, um incenso específico, músicas suaves, silêncio absoluto, um remédio mais forte para dormir, a exclusão total da cafeína, algo precisa ser feito, repete.
Passou uma semana irresistível às mulheres, seus percentuais amorosos haviam sido muito mais interessantes que em um período muito maior de sua existência, e tudo havia dependido de pura iniciativa – Que estará acontecendo com ele, se perguntará, que coisa maravilhosa é essa, sorrirá -, e essa iniciativa agora se descortina com um já conhecido termo clínico: euforia. Às vezes parece – e às vezes realmente é – muito positiva, mas não agora, agora é questão clínica, sempre que há algum transtorno as chances são clínicas, não dormir por três dias já se configura como um quadro clínico, a condição de paciente não lhe desabona – na verdade endossa – o diagnóstico. Curioso estes ponteiros, o silêncio agora já mais parece uma questão de tempo e contratempo, como na aula de tango a que não terá comparecido até a semana que vem.
Um faz tique, outro taque, tlec e tloc, pá e pum, um e dois, mais e mais, o importante é que a presença de um se dá mais nítida em oposição – por silenciamento – ao outro, ocorre-lhe o mesmo nas engrenagens internas, não sabe se alma, coração, mente ou peças menores, ou maiores, ou mesmo conjunto de engrenagens, fato é que algo lateja incessantemente por dentro, muito, mas muito inominável, enquanto se compraz do silêncio externo. Seria isto uma dança ou contradança fluídica? Há alguma sintonia nisto para além de si mesmo? Deseja muito que sim, há o temor de que tudo seja mera exacerbação de seu estado mental-corporal-espiritual. Deseja muito mesmo ser mais que presença e ausência, quer-se transcendência, e limite também, para poder reencontrar a si.
Decide por encerrar o fluxo bem aqui, diante da incerteza que continuará alimentá-lo e consumi-lo, isso não o perturba, problema maior é o descompasso na balança que acaba sempre em remorso ou lamentação. Não, que não se fale disso agora, é tempo de aquietar a mente que divaga, repor as energias emitidas, distrair os pensamentos, soltar as borboletas, contemplar as flores, projetar – eis que empaca -, efluir boas cores, preparar-se para a passagem, que os bons sonhos não demorem a chegar.