O Minotauro I - FR(I)TZ

I

Boi, boi, boi

Boi da cara preta

Pega essa menina

que tem medo de Creta

Meu pai me ninava com essa canção, quando eu era menina. Ele me balançava no colo um pouco, normalmente eu já estava cochilando. E o balanço e sua voz grave e lenta e depois o macio do colchão, me embalavam para dentro de um sonho. O doutor acabou de ir embora, do lado de fora do quarto pude ouví-lo dizer:

- Kharmides está ótima! Em forma! A musculatura anda um pouco flácida nas coxas, e a cicatriz das costas ainda está muito rígida... Não, não sei o que esperar para os próximos dias, só paciência...

Albrecht tem uma voz que invade às vezes meu pensamento e chego a pensar que ele me cantava para me ninar. "Creta", Creta, Creta... meu pai sabe o que essas palavras significam... Esse bastardo me apalpou inteira, por dentro das coxas até chegar à minha vagina, enquanto sorria. É um filho da puta!

"Não, o Minotauro não é um signo do horóscopo", foi a conclusão a que pude chegar assim que revi o doutor Albrecht. A tala no meu braço e o gesso da perna estavam me incomodando havia dois dias. Acho que vou precisar de muita terapia. Estou sem depilar as pernas há mais de 1 mês - que horror! - e este maldito Albrecht, desgraçado, me deixa sem saída. Meu namorado não volta com o café. Enquanto isso, televisão televisão televisão. Estou sem saída.

Ele me olha de maneira neutra e isso me irrita, haverá esquecido quantas vezes me disse "eu te vi crescer, Khármides!", "esses seios eram tão pequenos e sedosos, como um prepúcio". Ele não se lembra das vezes em que fez juras de amor e me obrigava a sodomizá-lo. Que monstro! Não se vê? Que monstro! E quem o convidou? Justamente meu namorado! E ele já vem se reaproximando, Albrecht! E dispensa meu namorado "Acho que café não é muito recomendado, porque você não busca aquele almoço de que te falei, Raul?"

Raul abandona seu posto. Estou sozinha. Depois Albrecht sai rapidamente, frio, sem me olhar; deve ter dito algo a Raul na copa. Eles são bem parecidos, tão semelhantes que chego a temer, a temer que eles não se fundam numa pessoa só. Se meu pai soubesse tudo o que Albrecht fez comigo, quando eu era apenas uma criança. Se Raul soubesse tudo o que Albrecht fez...

É óbvio que não existe um 'Albrecht', Albrecht é um nome fictício para todas as vezes que um homem me olhou na rua, me esfregou contra uma parede, contra uma pia. E, ao mesmo tempo, Albrecht foi um pediatra que me bolinava na maca desde os cinco anos de idade, pelo menos desde que me lembro. O que há, com efeito, são as mãos dos homens, as barbas, as babas, os milhares de olhos; mil visões que parecem nos proteger e parecem nos despir - como carcereiros que me lembram sempre do meu ser humana e ser encarnada e ser de desejos. Argos Panoptes! Albrecht! Estou com fome! Tragam-me comida, porque a consulta vai demorar.

Ele apalpou minha perna, perto da virilha e perguntava se doía, não doía, perguntava se formigava, não formigava, perguntava se latejava, não latejava, perguntava se eu sentia algo, não sentia, perguntava se eu estava bem, não estava, acariciou minha virilha até roçar minha vagina, mas não encontrou nada. Veio roçando sua calça no gesso. E o nojo contorceu e virou meu rosto, de modo que obriguei-me a perder o conhecimento de mim mesma e a porta do quarto de abriu ou se fechou, foi como se eu fechasse meu corpo. Indiferente ao mundo...

Sorri de novo quando percebi que havia porra por todo o quarto, nos meus cabelos, nos meus braços, mãos, pingando do gesso e umidecendo a tala. Tirei o último pentelho de dentro da boca e me limpei. O som do chuveiro me acalmou um pouco e fiquei pensando numa canção de levar menininhas para o abate.

Boi, boi, boi

Boi da cara preta

Pega essa menina

que tem medo de Creta

Imagino as nênias que as mães atenienses cantavam pensando nas filhas sacrificadas em Creta, repetindo alguma frase de um pai, de um rei tristonho e leviano:

para o labirinto do Minotauro te levei

eras tão linda, virgem risonha

fresca'inda, meu cacho d'uva,

te colhi, filha minha, filha minha, te levei.

para o labirinto do Minotauro te levei

de noivinha, minha menina boa,

eras uma princesa e uma fruta,

te colhi, filha minha, filha minha, te levei

para o labirinto do Minotauro te levei

uma rainha que sorri, sonha,

digna dum rei, azeitona scura,

te colhi, filha minha, filha minha, te levei

mulher do monstro

te levei

sacrifício a Creta

te levei

oferendamártir

te levei

minha'hermafrodita

te levei

Esse pensamento me consola. Raul não veio tomar banho logo em seguida, mas educadamente me ajudou a terminar meu banho. Depois foi seu corpo que dançava e rebolava na água, enquanto eu me contorcia um pouco de dor, porque não encontrava uma boa posição para vê-lo banhar-se e respeitar as talas. Depois a água secando por dentro do gesso assava minha pele. Essas dores que latejam me ajudam a ter certeza de que os tecidos ainda reagem e de que, se meus músculos definham, meu corpo ainda está vivo e preste. Raul nem me ouve quando lhe pergunto o que comerei no almoço, mas responde sem saber quando diz que o médico me recomendou um prato de comida tailandesa de um restaurante que está à esquina. Foi buscar o almoço que estava no forno para manter a temperatura. Aaaalllbrecht! Minotauro! Recomendação do monstro! Como dizer não? Digo sim! Digo sim mesmo! Tragam a comida! Tragam a bebida! Um brinde aos criminosos! Ele vai voltar aqui e vai sorrir de novo, cínico como um ignorante sem escrúpulos, ele vem se esfregar e buscar seu prazer! Mas não estou aqui somente para dar ou procurar prazer! Eu me levantarei em breve para caçá-los à faca e aos gritos, assim que minhas talas endurecerem novamente minha coluna, assim que meus membros absorverem a retidão dos gessos, assim que as cicatrizes engrossarem minha voz e minha alma... Estou aqui também para abater esses monstros: Albrecht, filho da puta, sou a virgem chamada Teseu! Quem te mata todo dia, anão ambicioso, sou eu!

Danilo da Costa Leite
Enviado por Danilo da Costa Leite em 23/06/2011
Reeditado em 28/06/2011
Código do texto: T3052520
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