Vi um homem passeando com sua alma.
Numa das ruas do calçadão do centro. Não lembro o nome, afinal aqui a gente se baseia mais por lugares de referência, não pelo nome das ruas. Dobrou a esquina do Senadinho, com sua alma ao lado, tenho certeza que era sua alma. Lembro que já passava da meia-noite, havia muitas estrelas no céu (prenúncio de manhã sem chuva), e nenhuma delas iluminava tanto a calmaria do local como sua alma. Mais que iluminar, dava contorno ao poste mais à frente, fôlego ao cachorro mais atrás, forma ao osso na boca do cachorro, cores aos luminosos mais acima, profundidade acolá, no interior da loja mais ao fundo. E o sujeito nem aí para minha cara de admiração diante de sua alma. Passou por mim como quem se serve de um mesmo caminho.
Ao dobrar a esquina, entretanto, cravou-me firme breves segundos de um olhar tão desconcertante que cheguei a duvidar quem estava errado: eu, de segui-los com o pensamento, ou ele, a caminhar de forma tão despudorada com sua alma ao lado. E por outros (agora infindáveis) segundos a minha alma quis trocar de lugar com a sua alma e ver no que poderia dar, o passeio do homem com sua alma parecia hipnotizar-me mais e mais. Chacoalhei a cabeça, respirei fundo e decidi segui-los sem me importar com o olhar daquele homem, interessava-me apenas sua alma.
De repente o homem cruzou os braços para trás e pareceu admirar livros numa vitrine, sua alma fez o mesmo. O homem, então, levou a mão à boca como que para tampar a respiração e não deixar sair, por tal orifício, alguma coisa – e eu pensava: com sua alma aí fora, e sua alma parecendo fazer o mesmo! Como podia tamanha sincronia entre dois seres ocupando, aparentemente, espaços diferentes? Chopin tocando Polonesa n. 2, Opus 40, no meio da rua, só perturbava, só dificultava a inicial calmaria do lugar, agora o vento sul, frio que só, já fazia questão de aparecer, o homem levando, pois, a mão direita ao cabelo, para ajeitá-lo, sua alma buscando ajeitar-se diante da cena. Nuvens agora apareciam no céu, tudo mais difícil de lidar, os tons mais graves da melodia eram indicativos de uma despedida em curso.
Eu sei que era.
Por fim o trajeto chegou ao fim, o homem com sua alma, leitor (sua alma!), atravessou a rua e eu, ainda estupefato, precisava compartilhar minha admiração por sua alma.