No Coração de Narciso* - Capítulo I

- Porque eu estou com AIDS, Mateus. Só por isso... – e chorou.

Chorou porque não agüentou a dor de perder tudo que tinha. E tudo que tinha, fazia dó de perder, sim. E como uma criança que procura a mãe no desespero do momento, Lúcia procurou também os braços de Mateus para desesperar-se ante a morte. Ele a abraçou. Estava chocado.

- Mas... mas você tem certeza, Lúcia?

- Fiz o exame duas vezes, amor. Eu vou morrer.

- Calma, Lúcia, a ciência evoluiu, as coisas estão andando mais depressa, os remédios estão surgindo... não é mais tão difícil viver com AIDS hoje em dia. – ela arrancou-se dos braços do marido.

- Fácil? Como você cogita a facilidade numa hora dessas? Como você...

- Vai se entregar, Lúcia? Vai viver se lamentando como um morto-vivo por aí?

- Você não entende, Mateus; você não poderia entender. – com as mãos alvas na cabeça, põe-se a chorar novamente, sozinha como um prenúncio.

A vida pode não ser sequer dois pores de sol. E a ânsia de um frio abrupto, qual a mão de um gatuno, percorre a espinha por quase todo instante. É a AIDS, o mal das almas, o castigo do Homem. Mas Lúcia era mulher forte. Socialmente, era a dama de diamante: inflexível e esplendorosa. Sorria orquídeas com sua pele nuviosa. E estava condenada. Porque dos males mais sorrateiros, esta marca negra é o plano mais laborioso do Anjo Caído.

Era rica, pois. E compraria Deus, se o preço não fosse tão alto.

- Você não pode se desesperar, Lúcia. Você é a dama de diamante, lembra?

- Diamante? Eu? Sou uma frieza feita de mármore... que em uma só pessoa encontrou um amor, e justamente neste instante, neste átimo miserável, Aquele a quem vocês chamam de Deus colocou, com seus dedos brutos, um vermezinho eterno dentro das minhas vísceras; um verme que vai comer tudo de mim antes que eu consiga morrer... morrer como eu queria. Ter feito tudo o quanto pudesse, tudo o quanto quisesse. Ter vivido.

- Lúcia, nós vamos tratar isso. Hoje em dia está mais... – hesitou – está melhor de tratar essas coisas...

- Fala o nome, Mateus. Está com medo de quê? E você acha que vai ser normal daqui pra frente? E nós? Você foi a única pessoa com quem consegui conviver por toda minha vida. Você foi tudo que consegui conquistar sendo eu mesma. Foi o primeiro que quis a mim, e não a meu dinheiro. Porque você vê, Mateus? Você vê que nem esse maldito dinheiro conseguiu me fazer a mulher que eu queria? Eu sou maldita, Mateus, eu tenho um Midas no meu peito.

- Lúcia, não sei. Você está exagerando!

- Exagerando? Sai daqui, Mateus, sai! Sai! – e aos gritos, com o braço esticado, exigiu a fuga de seu marido.

Lúcia era herdeira de boa parte da herança do senhor Alberto Figueroa Diniz. Um senhor que construiu toda sua fortuna no estado da Paraíba, onde se erradicou, vindo do Rio Grande do Sul. Chegou no estado por volta de 1920, já tinha posses. Sempre teve posses. Matava por dinheiro. Sempre houve gente para morrer e gente querendo matar, o que faltava era coragem, mas isto ninguém sabe, apenas este narrador que vos fala. Pela Paraíba, Doutor Figueroa, como ficou conhecido, começou a usar seu dinheiro legalmente, e ninguém desconfiava da origem. A Paraíba sempre foi um lugar de cegos atores, dizem os mais antigos.

Para encurtar a história, cansado leitor, sabe-se que o Figueroa adquiriu o vício das mulheres, vindo a aquietar-se por volta dos anos quarenta, quando se casou com Maria Estier Nonato, uma cabocla de dezoito anos de família humilde, com quem teve um filho. A esta altura, o velho Figueroa já possuía três supermercados, que mais tarde constituiriam a famosa rede Figueroa Diniz de supermercados no estado da Paraíba. Em 1970 faleceu o velho gaúcho, deixando o maior patrimônio monetário do estado para seu filho, que passara dez anos de sua vida em formação administrativa no Rio de Janeiro.

Porque de nada adianta o que tenho, se a vida não me quer mais. Errei, mas que todos paguem por seus erros. Todos. Não apenas eu. Iria em busca do maldito que me deixou esta marca, mas não tenho mais forças pra isso. E o Mateus, quanto tempo vai aturar uma pré-morta ao lado? Um pré-defunto, um cadáver morrendo... E ela dizia isso para si mesma como quem dialoga com Deus. Mas ela não acreditava em Deus, e talvez Deus não acreditasse nela.

A rede Figueroa Diniz apenas cresceu nas mãos de Henrique, agora dono. Chegou ao ponto de manter o monopólio no estado. Virou sinônimo de riqueza. Ele herdara do pai, juntamente à riqueza, os vícios. E o dinheiro é a nau mais veloz para a porta dos declínios. Conseguiu, do que este velho narrador saiba, uns três filhos, dentre os quais ocorreu Lúcia, a única menina. O poder foi muito grande. Um dos meninos, fruto de visitas a casas noturnas no centro de João Pessoa, morreu nos braços da mãe pouco depois de nascer. Foi misterioso para todos. Mais uma vez os atores cegos completaram seu ato. A segunda criança, neta, por sua vez, de um sargento da polícia militar, foi morar (por livre escolha?) no Maranhão. Esta nunca passou fome. A terceira era Lúcia, que fora neta de um dos mais influentes políticos da Paraíba, e que na década de noventa até mesmo a vice-governador ascendeu. Era o casamento perfeito. Henrique morreu em 2002, vítima da vida.

Lúcia no quarto, Mateus na sala. O choro nos dois. Um sorvedouro de idéias comprimia-se na mente do jovem. Estava muito preocupado. Olhou-se no espelho e sua feição o impressionaou. Pegou o celular, queria conversar.

- Amanda, posso aparecer por aí?

- O que houve?

- O Sérgio está em casa?

- Não, Mateus...

- Então espera que já já chego...

Desligou o telefone. Precisava aliviar o corpo.

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* Este texto é um romance que será publicado aos poucos, por capítulos, ao melhor estilo "folhetim". A depender dos leitores, claro, ele terá continuidade.

Felipe DCastro
Enviado por Felipe DCastro em 16/06/2011
Código do texto: T3038707
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