Riso Cego

Era um dia nublado, olhou da janela do apartamento e não conseguia ver muito distante por causa da cerração. Pensou que seria difícil atravessar a cidade, haveria imensas lagoas no meio do asfalto, carros entulhando os espaços. Não gostava de dias chuvosos, definitivamente eram seus piores dias, os humores malignos tomavam conta de seu ser, mas... Enfim era terça-feira, não poderia ficar na cama, deveria atravessar o quarto em busca da porta que lhe levaria do céu ao infernal trânsito alagado.

Se fosse noite, pensaria como a melancolia da cidade molhada lhe afrouxaria os sentidos. Sentiu vontade de sorrir, mas de súbito volta a sua melancolia real, era necessário coragem para enfrentar o dia. Pegou o casaco e saiu.

Ao chegar à portaria do edifício notou algo estranho: um amontoado de pessoas em frente à banca de jornal, imaginou todas as espécies de catástrofes que poderiam ter assolado o bairro. Não conseguia atinar com o motivo de estarem todos ali parados, às gargalhadas.

Especulou várias possbilidades, já que não via um motivo real, Seria um mágico que fizesse as pessoas se divertirem em dias de chuva? Chegou mais perto, ouvia comentários entre dentes e gargalhadas, mas como obrigar a rir? O melhor remédio é contar piadas, e todos riam, cada riso se desdobrava em novas gargalhadas como uma epidemia colossal de risos.

Ignorou o momento de euforia geral e seguiu firme na sua decisão de chegar ao ponto de taxi antes que desabasse o temporal novamente, no entanto era impossível ignorar a sandice que infestava o bairro. Não via motivos para o riso, então um garoto se aproximou e lhe perguntou se ele ainda não tinha sido informado da novidade, pois todos eram obrigados a rir e não entendia como ele pudesse ostentar uma cara tão zangada.

O homem de mala preta nas mãos e casaco jogado nas costas não conseguia perceber que graça havia em coisa tão absurda. Mas seria isso o que fazia as pessoas rirem sem motivos: O absurdo da situação? E as pessoa riam e riam, gargalhavam e gargalhavam em ecos colossais.

Olhou em volta, resolveu continuar andando, mas a cena era inusitada, as pessoas estavam aglomeradas em todos os cantos do bairro, esperou pelo táxi por horas a fio, ligou no escritório, mas ninguém atendeu, então resolveu ir buscar o seu carro.

Detestava ir de carro, ainda mais com a cidade inundada, mas como todos pareciam tomados de um frenesi hilariante, pensou que a demora do táxi poderia ser motivada por isso. O riso estridente da multidão perturbava sua cabeça, mas o que era pior: nem isso o fazia esquecer que a cidade estava inundada e que teria que ser muito melhor do que era nos momentos de crise para conseguir atravessar a cidade com imensos lagos, e como se não bastasse haveria carros travando todo o progresso do trânsito, era bem verdade que de táxi passaria pelo mesmo problema, mas pelo menos poderia pensar nos problemas, aliás, fora de seu bairro as coisas deveriam estar normais.

Voltou caminhando, tentando colocar as idéias no lugar, tentando esquecer a gargalhada universal, no entanto era impossível, aquele riso irritante perturbava o silêncio do bairro tranqüilo em que vivia.

Trabalhara muito para conseguir aquela paz tão sonhada. Poderia se dizer que era um homem bem sucedido socialmente. Morava em um condomínio de classe média alta, possuía todos os bens que queria, inclusive os que ainda nem existiam quando tinha sonhos de criança. Era um advogado requisitado tanto nas rodas políticas, quanto nas reuniões sociais ou profissionais. Era um homem que estudava filosofia, teologia, administração, entendia um pouco de lógica e tinha conhecimentos gerais que fariam inveja a um diplomata formado pelo instituto Rio Branco.

Ao chegar a porta do seu condomínio olhou para trás, nada de mudar o ânimo do grupo aglomerado em frente à banca de jornal, agora parecia uma multidão incontável e o riso se espalhava. Engraçado era que isso só aumentava o seu mal humor.

Isso o fez pensar em como era incrível sentir mal humor numa cidade onde todos riam sem parar.

Tamar Rabelo de Castro
Enviado por Tamar Rabelo de Castro em 27/11/2006
Reeditado em 30/11/2006
Código do texto: T302464
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