I Wanna Be Adored - Parte II
Quando voltei pra pista aquele boçal do SUV importado estava esperando para ser atendido. ME esperando para ser atendido. Aquele idiota que noutro dia falou da dancinha da propaganda. Fez questão do meu atendimento. Estendeu a mão pra mim com um sorrisinho de filho da puta e eu me arrependi de imediato de ter lavado a mão antes de voltar pro trabalho. "Eae, tchutchuquinho. Sol da porra, não? Põe trinta de gasolina e fica com o troco" falou estendendo uma nota de cinqüenta reais. Qual que era a dele? Eu tinha assistido o tal DVD no dia anterior e aquele “tchutchuquinho” era uma referência à última propaganda veiculada na TV. Por que o mundo tem que ser tão cheio de idiotas que têm os melhores carros, as melhores roupas, as melhores mulheres e não tem mais do que meio quilo de cérebro? É algo injusto, no mínimo!
*
Já em casa, tomando banho. Fiquei pensando no bilhetinho que recebi e que ficou pegando fogo o dia inteiro no bolso da calça. "Só você tem esse número". Será? Por que eu? E por que eu só atraia esse tipo de mulher? Casada, quero dizer. Não mulheres fenomenais, não seres moldados especial e excepcionalmente para tirar o sossego do sexo oposto. Aparecia uma ou outra, ou bonita ou gostosa, mas nunca os dois. Aquela ali tinha tudo de mais bem-feito em matéria de estética corporal. Mas um caráter falho. Afinal, ela era casada, e apareceu bem numa fase em que eu tinha adotado uma superstição quase que como uma religião: eu achava que se eu ficasse por aí passando maridos pra trás comendo suas mulheres, futuramente, se eu me casasse, receberia o troco equivalente à todas as corneadas a qual fui testemunha e pivô. Esse era um medo que eu tinha e que havia me colocado na linha. Me transformou num cara mais ou menos decente. Um pilantra a menos no mundo.
Demorei um pouco pra dormir, matutando se ligaria ou não. No verso do bilhete tinha o horário que eu deveria ligar. Seis da manhã. Um tanto quanto estranho. Mas nem tanto. Casada. Casamento. Matrimônio. Anos de planejamento, anos de sonhos conjuntos. Montagem de casa. Escolha de padrinhos. Escolha da viagem. Contratos assinados. Filhos. Despesas. Passeios. Histórias cruzadas se entrelaçando e formando uma só história. Uma coisa bonita de se ver. Um emaranhado de coisas que forma uma só.
E um frentista com insônia decidindo se trairia sua superstição - para fazer algo que se não fizer outro fará – corroborando com a traição de uma mulher ou não.
Acordei no dia seguinte com a mão no telefone.
Ela poderia ser escrota.
Ela poderia ter bigode.
Ela poderia ter pêlos abundantes nas axilas.
Ela poderia ter um chulézão monstruoso.
Ela poderia não ser tão igual a Julia Bond.
Ela poderia ser solteira.
Fiquei com o telefone na mão direita e com o papel desdobrado não mão esquerda por cinco minutos. Mas não liguei.
No corre-corre de sempre e chega o idiota de sempre, como sempre fazendo piadinha sem graça para deteriorar o meu humor. "Eae tchutchuquinho! Põe vintão de gasolina ae", e me estendeu as chaves. Coloquei os vintão dele com um prazer imenso; ele logo sumiria da minha frente. Devolvo as chaves e o desgraçado bate em retirada e do semáforo que fica em frente ao posto me grita: "Desconta daqueles vinte que eu te deixei, otário!". Claro, tive de repor o maldito dinheiro, mas o impropério, o atrevimento, a pirraça valiam bem mais do que aquela notinha do mico-leão-dourado e essa dívida com aquele escroto eu só conseguiria quitar na base do soco. Nesse dia a Ale não apareceu. Ótimo, uma preocupação a menos. Ela era gostosa demais e devia meter que nem uma cabrita.
Mas era casada. Diabo.
No dia seguinte na pista, pára uma SUV de luxo com os vidros escurecidos ao talo. O vidro é abaixado e adivinha quem era? O filho da puta de sempre. Desta vez ele foi além ao cuspir acidentalmente na minha direção. Beleza. Comuniquei a sucessão de pirraça gratuita daquele desgraçado pro japonês e ele falou em tom sábio e lacônico: “Ignora, continue tratando ele como se fosse nosso melhor cliente. Você é inteligente, não precisa usar de violência. Vamos subverter essa hostilidade dele, sim?”.
Claro. Ficar sentado jogando paciência no ar-condicionado e tomando café o dia inteiro dava-lhe o direito de usar aquele tom professoral para lidar com seus humildes lacaios. Dava sim, todo o direito. Até o dia que a paciência estourar...
Alê desapareceu depois do dia que me passou o tal bilhete. Será que ficou esperando a minha ligação e como não a recebeu, trocou de posto? Dias estranhos e quentes. Depois da cuspida o escrotão sumiu também. Pelo menos.
Duas semanas depois do dia da concisa missiva, aquela SUV de luxo reaparece. Na hora, só tinha eu na pista, os outros estavam ou ocupados ou desocupados (lanchando). Que beleza! Ele pára na mesma bomba de sempre e os vidros são então baixados e eu com os punhos cerrados tiritando de raiva. Cara, jurei que se ele fizesse alguma gracinha eu iria moer aquela cara de cu na porrada! Mas não era ele com aquele queixo quadrado e a cara de Don Juan de quinta, com suas tatuagens de dragões e carpas e índias – mas nem pra bom gosto de tatuagem o filho do cão servia. E não, não era ele. Era Alê. No carro dele. Poderiam ter mil carros iguais, da mesma cor. Mas a placa era dele, e era ELA dentro do carro, sorrindo pra mim como se não tivesse desaparecido por tanto tempo. Pior: sorria como se fossemos cúmplices de uma ardilosa trama de infiel aventura extra-conjugal. “Olá, bebê, como você está?”, e piscou, aquela mesma piscada safada de sempre. “Vou indo, e você, que sumiu de repente? Carrão novo, hein?”. “Ah, gostou? É do meu marido, ele foi viajar e o meu quebrou, aquela porcaria, por isso que eu sumi”. “Ah, entendi”.
Vamos organizar as coisas.
Eu ralava o cu na ostra debaixo de sol e chuva e vento e frio pra ganhar um salário razoável. Eu não me vestia exatamente bem. Algumas mulheres me achavam bonito enquanto outras se benziam quando me olhavam mais atentamente
Uma mulher muito gostosa com o corpo igual ao da atriz pornô mais perversa do mundo que era cliente do posto do meu patrão japonês certo dia me entrega um papel cheio de nuances e possibilidades de um sexo maravilhoso e sem amarras. Porém era casada, e de mulher casada eu queria distância.
E por fim, um babaca cheio da grana. Um tipo bonito, forte, provavelmente galanteador. Um desgraçado que seria capaz de vender a própria mãe e precisava chacotear pobres frentistas para satisfazer seu ego gigante.
E os dois eram casados. E eu tinha a faca e o queijo na mão: uma tórrida paixão de verão e uma vingança “sem usar de violência”.
UAU!
16/11/2010