Muralhas do tempo
MURALHAS DO TEMPO
Março/2011
Já era madrugada quando os ânimos lhe despertavam.
Passara dias imerso na necessidade de si. Faltava-lhe, no entanto, a disciplina, o tempo, o silêncio.
Domingo, quando todos se recolhem, ele se abre.
Das leituras em Jung, partira à biblioteca paterna. Algo despertava sua curiosidade: seria o I-Ching uma fonte a ser consultada nos dias vindouros?
Recordou a figura mágica de alguém que sempre jogava moedas e seguia à busca de respostas, conforme os ensinamentos da China.
Maravilhado, pensava no quanto as coisas se conectavam, quantos objetos, leituras e vivências eram atraídas umas às outras.
Do que sentia, ligava-se à lembrança de uma pequena conversa, revestida agora pelo sentido junguiano: há propósitos quando seres uns se juntam aos demais.
Falava qualquer coisa sobre esportes com um recém-conhecido, quando chegara à questão da terra das muralhas. O rapaz com quem conversava praticava Tai Chi. Também estudava o chinês fazia algum tempo, identificando-o, apesar das diferenças com o alemão, seu idioma pátrio, como dotado de elegância profunda.
Perguntou a ele: “Você também compreende o Tao Te King, o I-Ching e as demais preciosidades chinesas?”, “Sim, um pouco. Os taoístas têm grande participação na medicina chinesa, junto de muitas técnicas inovadoras que buscam a melhora do corpo... Também tenho estudado um pouco da literatura chinesa”, “Infelizmente pouco conheço de tal literatura, ainda que tenha tido qualquer noção através dos contos de Hermann Hesse”.
O mesmo dragão e sua cauda, que representam a busca incessante de Parsifal, vão de encontro à concepção cosmológica de Hörbiger: o dragão é eterno; contudo, a pouco está permitido nele montar.
Faltavam algumas horas para que o dia amanhecesse. Da escuridão, retirava a tinta da qual deixava impressa, junto à pena, momentos de realização.
Não sabia definir ao certo o que sentia.
Trabalhava simultaneamente em obras e composições. Dispunha de tempo. As parcas economias não lhe afetavam.
Perguntava-se sobre até que ponto teria atuado irracionalmente, quando confiara uma carta a certa moça, na qual deixara registradas suas impressões sobre os dias em que a observara de seu próprio ninho da águia.
Era agradável durante os dias recorrer a uma figura feminina, ainda que poucas fossem suas razões para fazê-lo.
A chegada do frio se adequava aos moldes de sua personalidade.
Junto às suas anotações, o costume de registrar frases marcantes ao início de cada página: “Sin missión, no hay hombre”, de Ortega y Gasset; “Vocatus atque non vocatus deus aderit”, de um oráculo délfico; “O mundo era mais sábio quando o culto ao feio não havia atraído a atenção de ninguém”, de Ezra Pound; e finalmente, “Os homens são deuses mortais; os deuses são homens imortais”, de Aristóteles.
Em meio aos seus papéis, uma pequena nota; início, quem o sabe, de um conto que o sono o impediu de dar continuidade:
“Ele ouvira a uma canção sobre o tempo.
Todas as noites parecem compostas de uma mesma essência: a viagem.
Ele seleciona a uma leitura e uma trilha sonora, como se distante desejasse estar.
E quando deita, tem, sonhos à parte (quando sonha), um sentimento de imenso pesar, de incompletude, por viver sob um lema espartano: exige diariamente o máximo de si próprio.
Nunca foi possível produzir tanto quanto agora. Diante de tudo, uma pergunta: ser-lhe-á permitido administrar todos os seus planos?
O artista vive um silêncio onde fere sem querer fazê-lo. Afasta-se dos seus demais. Está imerso no universo das próprias criações.
Vive, em suma, uma felicidade que a poucos se destina; o sentido de sua realização não é compreendido”.
Abandonara a anotação junto à mesa. “Melancolia”, pensava, esboçando um sorriso indiferente.
E em um instante, recordou o sonho de uma noite anterior.
Retrocedeu à manhã em que se esforçava para lembrar por onde havia passado, quando simplesmente as cenas correram-lhe à mente.
“Bem o recordo!”, dizia. “Sim!”. E ao fechar seus olhos, como se pressionasse a memória a melhor funcionar, não mais ali estava. “Era noite. Junto a um grande salão, havia um piano. Muito estranho, deveras, pois suas teclas eram tão grandes como nunca vi. Uma moça conhecida o tocava, mas, por conta do nervosismo, suas falhas eram constantes. Possuía um rosto bonito. Sensibilizado, segui em sua direção, pois ela chorava”. “E o que teria sido?”, pensava.
Sonhar lhe era um acontecimento extraordinário, porquanto não fora presenteado pelos deuses com tal dádiva – não ao menos, de olhos cerrados. “Para onde conduzem-nos os olhos?”, ele se perguntava, recorrendo a mitos dos quais não encontrava nexos.
“E pensar que há partes do nosso pulmão que não conhecem o ar. E pensar... Pensar que as sombras das nossas moradas antárticas ainda nos esperam... Pensar e pensar... Pensar que por vezes, não somos felizes senão sozinhos”.
“Como deve ser a sensação de estar distante da própria terra? Que saudade haveria de ser maior?... ‘A jeder Mensch hat halt’ne Sehnsucht’, foi o que deixou dito o último grande romântico”.
E antes que o dia encerrasse, ainda divagou: “Os crop circles dizem-nos o quanto no fundo corremos em círculos; a questão, quem o sabe, é saber até que ponto estamos aprisionados... E que meios de libertação nos são ofertados...”.
“E pensar...” fora o que por último dissera. Dormiu então.