O CORVO

– Verdade Senhor delegado. Como bem sabemos, todos os dias estava com ele e éramos amigos íntimos. Mas, na verdade, ganhava para isso. Meu quase dois metros de altura, junto a esses músculos sempre em dia me garantiu esse bom negócio. Comia e bebia do bom e do melhor e ainda tinha um quarto na mansão só pra mim. E apesar de não ter carteira assinada e tudo ser na informalidade, ganhava e ganhava muito bem. Fora a consideração dos pais, onde era confidente e a eles tudo relatava.

– Tudo?

– Nem tudo Senhor delegado. Tinha coisas que não poderia falar, não.

– Que coisas?

– Muitas coisas, Doutor. E não posso me aproveitar da circunstância para delatar erros do meu amigo. É passado e nada mais poderá ser feito para mudar.

– E o negócio do estupro? Conte-me mais detalhes...

– Estupro de quem?

– E tem mais caso? Estou falando da filha do Doutor Rodrigo, a Jaqueline, cinco meses atrás.

– Olhe Doutor, como já lhe disse antes, ela deu mole e foi com mais uma amiga tomar banho de piscina na mansão. E toda semana tinha garotas na beira da piscina, tanto lá, quanto no sítio. Nesses quase dois anos, nunca faltou. Acontece que depois de boas doses de vinho e muito chamego, tudo acontece. Os detalhes, afirmo-lhe, não vi não. E lembrar que já tinha anoitecido...

– Mas ela disse que gritou muito para que você a socorresse e foi incapaz de ajudá-la. Não esquecer que ela foi violentada, machucada, agredida, cuspida, teve mechas do cabelo arrancadas e foi expulsa aos empurrões e ainda sem a calcinha, segundo ele, “troféu de caça!”

– Doutor, eu sempre estava ao seu lado para defendê-lo dos riscos e ganhava bem para isso. Também estava bebendo e namorando no momento com Rita de Cássia, amiga dela. Como poderia saber que os gritos não eram de prazer, em um sexo violento? E como sabe, na outra vez que vim depor, já declarei tudo o que sabia.

– E a surra sem propósito que vocês deram no filho do juiz, um garoto menor de idade, franzino, o qual até hoje, mais de três meses passados, está no hospital, todo quebrado?

– Ali, Doutor, não poderia ser diferente. E também já dei declaração sobre isso. A namorada do garoto começou a flertar com o Laércio, dando tanto mole que ele, na primeira oportunidade, abordou-a. E foi na porta do banheiro que tudo começou. E se ele era franzino, nem sei. Só sei que estava com mais quatro amigos e todos partiram para cima. Minha obrigação era defendê-lo.

– E precisava quebrar o bar do Arlindo, por completo? E era necessário usar uma tranca de madeira para quebrar cabeças e costelas?

– Aí Doutor, não posso dizer mais nada. Já falei tudo que sabia.

– Como também já depôs sobre outros tantos casos de arruaças e mesmo solicitado, nunca mudaram o comportamento. E lembre-se que a cada mês, em menos de dois anos, aconteceram muitas novidades... – Doutor João Marcelo sorve a água e fica a encarar Carlão, o qual de imediato abaixa a cabeça.

– Mas conte-me como tudo aconteceu... Já sabemos que ele estava alcoolizado, drogado e encolerizado, como de todas outras vezes...

– Senhor delegado, foi tudo muito rápido. Íamos para o sítio, tranquilos, ouvindo Bruno e Marrone, quando no primeiro quebra mola do posto de gasolina do Eujácio, uma S10 cabine dupla bateu levemente na traseira de nosso carro. Ele levantou a mão pedindo para que eu aguardasse, partiu para cima, peitou o cara que já estava olhando se houve algum estrago e, como de todas as outras vezes, vociferou: “Sabe com quem está falado?” E o homem, impassível, o olhou nos olhos e disse: “Não. Não sei.”

– Prossiga... – Pede o delegado, vendo os olhos do interrogado, marejarem.

– Nesse momento eu ainda estava sentado no banco do carona da Ferrari, olhando pelo retrovisor. E, sinceramente, achei que o resultado seria o de sempre; o incauto sempre saindo humilhado, sem nada poder fazer. E então, ele arrotou: “Sou o Laércio, filho do coronel Sebastião, dono da cidade!” E como não ouvi resposta de imediato, saí do carro e mal dei um passo, o homem perguntou: “E você, sabe com quem está falado?” Laércio olhou para mim, sorriu jocosamente, e com ar de deboche, meneou a cabeça. Como o homem ficou a encará-lo, calado, ele vociferou: “Diga logo o nome do bosta!” O homem, calmamente, levou a mão direita para suas costas e com um timbre na voz de quem traz más notícias, disparou: “O bosta é o pistoleiro contratado para matá-lo.”

– E aí?

– Acredite Doutor, não deu para fazer nada. Todas as arruaças de Laércio, em qualquer município ou distrito, eram com garotos da idade dele e só procurava confusão quando tinha vantagem. E a arma dele sempre ficava no carro, embaixo do banco; e como sabe, nunca andei armado. E não esperava que fosse ocorrer essa tragédia.

– Você reconheceu o sujeito?

– Não, Doutor. Estava todo de preto, com o chapéu escondendo parte do rosto. E com uma pistola na mão, quem é doido de encarar? Corri para o posto, imaginando bala pelas costas. Mas ele entrou na S10, deu ré e foi embora. Nem deu para ver a placa. Só sei que o carro era novo e a cor, prata.

– Espero que tenha aprendido a lição. Não esqueça: sempre existirá alguém mais forte e mais valente lá na frente. E veja que dessa vez a família dele nem advogado mandou para lhe acompanhar. E sorte sua que não lhe incluíram na encomenda. E fico eu com essa dor de cabeça. São tantos os inimigos que nem sei por onde começar...

RAbreu
Enviado por RAbreu em 07/06/2011
Reeditado em 10/06/2011
Código do texto: T3020062