Cigarros, fotografias e lembranças.

A fumaça do cigarro fazia rosquinhas brancas acinzentadas no ar, olhou para o relógio, marcava onze horas e trinta minutos, buscou refugio nas paredes brancas repletas de gordura da cozinha, olhou para o corpo que jazia no chão da cozinha já há três dias, os olhos esbranquiçados permaneciam abertos, cheios e vazios ao mesmo tempo, a louça que se acumulava já tinha uma semana e as panelas do fogão já datavam de mais de um mês.

Olhou para tudo mas não viu nada, o fio de náilon que segurava a torneira, o fogão gordurento, a geladeira, aberta e vazia, os armários murchos de qualquer coisa, a barata que marcava valiosa presença. Deu mais uma tragada no cigarro, olhou os arcos que se formaram quando soltou a fumaça, levantou, pegou a caixa de fósforos, abriu a válvula do gás e deixou todas as bocas do fogão soltando o cheiro de morte, foi andando a passos lentos até a sala, branca como a cozinha, mas sem gordura esparramada pelas paredes, pegou o casaco, tirou a carteira de cigarro do bolso da frente, ajeitou o cigarro, aceso, embaixo do tapete, acendeu mais um e ajeitou no vão do sofá, e mais alguns, espalhados por toda a sala, um em especial, que colocou na gaveta de fotografias, pegou apenas uma fotografia, que guardou no bolso do casaco, de quando o corpo que estava morto e esclerosado no chão da cozinha era novo e forte, esta levou com ela.

Saiu da casa como princesa, atravessou o jardim como rainha, passou pelo portão como deusa, e se tornou lixo. Desceu a rua de ladrilho passo por passo, como se carregasse toneladas de chumbos nas pernas, passou pela praça, pelo cinema, pelo teatro, pelo museu, pela igreja e pelo clube, deu uma parada na zona boêmia, olhou as hildas, se imaginou como uma delas, riu de si mesma e voltou ao seu caminho.

Percorreu túneis, vielas, ruas, terreiros, becos, escadarias, passou por mulheres belas, outras nem tanto, homens comprometidos e realengos, até terminar seu caminho, em frente ao mar azul, tirou a fotografia do bolso, olhou como se olha a coisa mais bela do mundo, beijou a imagem, pegou a caixa de fósforos que também estava no bolso, acendeu um, e olhou a fotografia se queimar.

Depois que a fotografia virou cinzas andou devagar até a água azul, olhou ao redor, enquanto percorria o trajeto de poucos metros, o deserto se instalava por todos os lados, sentiu a lágrima percorrer sua face em um caminho calejado, lembrou das palavras que ele dizia, “Em alguns anos nossos rostos vão estar parecendo uma rodovia federal”, não evitou o sorriso, e quando tudo parecia bem e ruim, bom e mal, mergulhou, a água salgada limpou as impurezas do seu corpo, e a transformou em mais uma lembrança dos poucos que a viram, mais um pouco de cinzas, cinzas molhadas.

Amanda França
Enviado por Amanda França em 01/06/2011
Reeditado em 05/08/2012
Código do texto: T3008046
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