Cecília
Onze horas quando olhou para o relógio pela ultima vez, depois disso já não se lembrava de mais nada, apenas sono, incontrolável e escuridão. Acordou de madrugada a TV ligada jogava luzes coloridas nos seus olhos, notícia de última hora, agentes americanos haviam encontrado e matado Osama Bin Landen, grande coisa, resmungou consigo mesmo. Ainda restavam na memória restos de um pesadelo, que não se lembrava direito, era comum, pesadelos, noites após noites, nos últimos dez anos, desde a morte de Cecília, aquilo parecia não ter fim, mesmo dizendo para si mesmo todos os dias que não tivera culpa, que havia sido apenas um acidente, uma fatalidade, nada disso adiantava o pesadelo sempre vinha.
O telefone toca em algum lugar distante, não é o seu, já não tem telefone, sua linha foi cortada há quase dois meses. Em um dos cantos do quarto a máquina de escrever está abandonada e em silêncio profundo, quase uma moribunda, então ele a olha com um quase pesar no olhar, o silêncio dela é igual ao seu, e é também interrompido pelo telefone que toca em algum lugar.
Noir, esse é o nome que escolheu para si mesmo, é francês, não um nome, uma palavra, quer dizer escuro ou algo relacionado a isso. Era esse nome que estampava as capas de seus livros publicados no passado, quando Cecília ainda era vida, mas os anos se passaram e agora, ele, Noir, sabe que não existem mais livros a serem escritos. Sabe que toda a literatura está morta, apodrece nos cantos do velho apartamento. Tudo tem cheiro de velho, cheiro de pó, de passado, e o sufoca, o cheiro de tudo ao redor.
Saber que já não existe literatura, para ele, de certa forma o deixa feliz, e ele quase sorri na morbidez do apartamento. A foto de Cecília com o vestido de formatura ainda esta pendurado na parede, uma foto antiga, amarelada, o sorriso da menina está amarelo, pálido, e os olhos estão distantes, olhando para um futuro que ela não chegou a conhecer.
O relógio parece não querer andar para frente, há quase dez anos está nessa mesma velocidade, uma espécie de pássaro ferido que apenas se arrasta de um lado para outro, assim como ele mesmo, Noir.
A TV conta que Bin Laden foi morto e as imagens mostram uma casa, cama, moveis simples, um televisor antigo, tudo parece tão frágil e decadente como que tem entrado por seus olhos nos últimos anos. Mostra a TV que há comoção em varias partes do mundo, nações, homens, mulheres, velhos e crianças festejam a morte de um homem, então Noir sorri, vendo que a decadência dessas pessoas é tão gigante quanto a sua. Um sorriso em meio ao breu, iluminado apenas pelas luzes que TV joga no quarto.
O café da manha é simples feito de café preto, forte e amargo, pão comprado há dois dias na padaria da esquina. O sol entra em raios tímidos pelas frestas da veneziana, sugerindo que a vida prossegue lá fora. Antes ele comprava leite fresco para a menina, todos os dias acordava cedo ia a padaria trazia pão fresquinho, leite, chocolate, queijo, presunto, quando Cecília acordava o café estava pronto, servido, o leite fumegante exalava um cheiro de felicidade, que não havia igual em qualquer outra ocasião.
Noir contempla a cadeira vazia, herança da menina, que deveria ser uma moça hoje, talvez casada, com filhos, ele procura não pensar nisso, engole o café, esmurra o pão e o empurra garganta abaixo.
Antes havia uma resquício de literatura em tudo, a menina chegava em silencio, pisando devagar para não o desconcentrar, ele estava sempre sentado na maquina, havia uma porção de literatura temperando tudo ao redor, nas pessoas, nos objetos, no próprio ar que respirava, e a menina sabia disso, e por isso não queria tirar de seu devaneio, roubar sua inspiração, mas ele sabia exatamente o momento que ela entrava em casa, sentia seu cheiro e não havia, para ele, lugar em que houvesse mais literatura do que no cheiro de Cecília.
Engole em seco, parece que não há sabor nem mesmo no amargor negro do café recém coado ou no pão dormido. O telefone já não toca, mas existe o burburinho de vida lá fora, aquém da janela, muito além das cortinas fechadas, as pessoas lá fora recitam seus mantras diários, repetem a vida como os apostadores que jogam sempre os mesmos números na loteria.
Os ruídos da cidade são enervantes, mas é preciso seguir adiante, avante, para frente, sempre para frente, nunca retroceder.
Os paralelepípedos dessas poucas ruas antigas dão a Noir alguns segundo de liberdade, vendo as crianças que brincam de amarelinha em cantos isolados de sua memória, e nesses momentos nem tudo e cinza ou démodé, é tão somente límpido, mas essa liberdade e tão passageira quanto o roçar de seus pés no calçamento, dura um segundo apenas, inebriante, mas passageiro.
Manter o passo firme é imperativo, uma ordem surda que vem de dentro de suas entranhas, toma conta de seus músculos com uma obstinação que as vezes até mesmo desconhece, por isso ele segue enfrente mesmo na ausência de Cecília. No entanto a menina está dentro de sua cabeça o tempo todo.
Casas antigas, homens barbudos, por instantes se lembra da morte de Osama Bin Laden, que a TV alardeara a todos os cantos, o terrorista parecia ser uma pessoa sem sentimentos, pensa, as imagens que já vira na TV não eram capazes de mostrar alguma espécie de sentimento nos olhos daquele homem, mas haviam aqueles que o amavam, o idolatravam, enfim todos mereciam uma dose de amor, mesmo que pequena e mesmo que de poucos.
Os homens e suas barbas espiam as crianças nas calçadas, são pais, avós, tios, todos eles querem um bem enorme a todas aquelas crianças, Noir também, sente uma indescritível alegria à visão de todos aqueles seres minúsculos a se contorcerem ao sol da manha. Ele caminha, vira a esquina e se vai. Vai ao encontro de Cecília.
O cemitério está deserto, o cheiro de flores mortas por todos os cantos, moscas, pássaros, libélulas solitárias, voam ao redor de Noir. A pequena sepultura está ali intacta a mais de uma década, os azulejos brancos, as cruzes de bronze, o pequeno retrato da menina com o vestido da formatura. Silencio. Um silêncio sem preces ou literatura, apenas um retrato desbotado, o retrato de uma menina com um sorriso antigo, um sorriso de mais de dez anos atrás. Noir se senta e fica ali, quase sem respirar, quase sem nenhum pensamento, só a lembrança do sorriso da menina e uma lagrima que escapa aos poucos de algum canto escuro de sua alma.
Odair J. Alves
Dracena 30/04/11