Nas Mãos do Sonho


    Foi amor à primeira vista. Levado pela mãe para uma consulta com a pediatra, o menino apaixonou-se pelo ambiente do hospital, pela profissão daqueles homens e mulheres de jaleco branco, a quem os doentes procuravam com um brilho de confiança nos olhos. Tinha 10 anos e nunca frequentara uma escola; o que sabia – ler com dificuldade, garatujar o seu nome e os rudimentos das quatro operações matemáticas – aprendera com Dona Joana, vizinha de sua mãe. Mas, depois daquele dia, João decidiu que queria ser médico. Perguntou para a mãe:
      - Mãe, o que é preciso para ser doutor?
      Sebastiana, a mãe, olhou-o penalizada:
      - Muito estudo, meu filho, muito estudo!
      - O que eu sei não dá?
      A mãe deu uma estrepitosa gargalhada. Mas se arrependeu quando viu os olhos esperançosos do menino, ficou em silêncio por uns breves minutos, e respondeu já com um nó na garganta:
      - Não, filhinho, não dá. Tens que fazer 9 anos do Ensino Fundamental, 3 de Ensino Médio e se passares num tal de vestibular para uma universidade pública, mais 6 de Faculdade de Medicina. Dezoito anos de estudos, no mínimo!
      João não desanimou:
     - Quer dizer que se eu começar este ano, com 28 anos já posso ser médico?
      - Sim, filho, mas como? Teu pai precisa do teu trabalho na sua barraca da feira.
     - Mas eu quero ser doutor, mãe! Eu quero ser doutor!
     Havia tanta determinação e esperança nos olhos de João, que Sebastiana enterneceu-se até às lágrimas. E em silêncio, enquanto caminhava, fez para si mesma o solene juramento: “Vou lutar pelo seu sonho, filhinho, juro que vou lutar.”
    O Flamengo tinha perdido o jogo, Pedro tinha acordado de muito mau humor, depois da absurda cachaça do domingo, mas mesmo assim Sebastiana teve coragem para puxar o assunto:
      - Pedro, temos que botar o João na escola. Ele quer ser doutor.
      - Ora, não me aporrinha, mulher, esse negócio de doutor é pra gente rica. O que eu sei ele sabe, e com o que eu sei dá pra sustentar a minha família. E depois, se ele for para a escola, quem vai me ajudar na barraca da feira? Quem vai levar as encomendas para os meus fregueses certos?
      - Tens que pensar no futuro do menino. Contrata um ajudante.
      - Um ajudante? Tás delirando, mulher! Ninguém vai me ajudar na barraca por qualquer ninharia. Não dá, nada de escola, ele tem que continuar me ajudando na feira. Pobre não precisa de estudo, mas sim de coragem para trabalhar! E não se fala mais nisso!
      Mas se falou. E muito. Tanto que ficou irreconciliável a situação conjugal de Sebastiana e Pedro. Sebastiana lutava pelo sonho de João, Pedro lutava pelos braços de João na feira. Não teve jeito, separaram-se, e Sebastiana foi embora para o Rio de Janeiro, levando João e o seu sonho de ser doutor. Conseguiu um emprego de faxineira, um barraco na Rocinha, e logo matriculou João numa escola pública. Pedro ficou no Maranhão, com a sua barraca de feira, sua cachaça de domingo e a sua paixão pelo Flamengo.
      Anos difíceis para João, alguns até mesmo tão penosos que o sonho se vestia de cinzento desânimo. Estudos, sacrifícios, tantas renúncias... Um dia, cansado, desabafou para a mãe:
      - Mãe, já tenho o Ensino Médio. Não é melhor arranjar um emprego e desistir da Medicina? Talvez o pai tenha razão...
      Sebastiana ficou furiosa e berrou:
      - Nada disso! Teus sonhos são as lâmpadas que iluminam a tua estrada, sem eles, andarás no escuro por toda a tua vida!
      - Doutor João, o paciente já está anestesiado.
     - Hã? – assustou-se o Doutor João, ao ouvir a voz da enfermeira.        Entregue às suas recordações, a sua mente ausentara-se temporariamente da mesa de cirurgia da UTI.
      Mas logo se recobrou, acenou afirmativamente para as enfermeiras e médicos assistentes, e as suas hábeis mãos de cirurgião fizeram a primeira incisão no tórax do pai para implantar-lhe duas pontes de safena, sem as quais ele não viveria nem mais um ano.
Santiago Cabral
Enviado por Santiago Cabral em 29/05/2011
Reeditado em 29/05/2011
Código do texto: T3001172
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.