Carente
Carente
Pretextando enxaqueca ela estava fechada a chave no quarto*. Bati de leve na porta avisando que eu ia indo, ouvi dela algumas palavras pronunciadas bem baixinhas e que não pude entender. Voltei e perguntei o que havia dito. “Nada”, ela disse. “Disse sim”, falei – tornando a perguntar o que havia dito. Sem saída, por trás da porta* fez a confissão que lhe deve ter custado enorme sacrifício e esforço extraordinário para admitir o escancaramento do que ela considerava uma fraqueza: mostrar-se carinhosa. “Eu disse”, confessou: “vai com Deus”. Fiquei parado atrás da porta, imobilizado pela surpresa, pensando no motivo dela ter exposto seu cuidado comigo. Só saiu do quarto depois que parti, pois ela não suportaria o acanhamento de enfrentar-me após sua derrota sentimental. Ela veemente diz que não, mas é assim. Incapaz, comigo, de demonstrar seu afeto com palavras ou gestos. Usa outros meios para transmiti-lo, recordando acontecimentos da infância, por exemplo, ou falando de livros,músicas e cantores, mas sempre com uma admoestação severa a fim de provar que detesta mimos e dengos. A maior demonstração de carinho que já recebi foi na frase repetida: “tudo vai dar certo”. Nesse tempo em que há a facilidade do telefone que ameniza distâncias, ausências, saudades, é quase um escândalo sugerir: ela não telefona.
Sou temeroso de qualquer palavra ou gesto brusco de minha parte a faça esconder-se como uma pérola em sua ostra, ou como uma trinca em colarinho de camisa branca engomada. Tenho predileção por roupa branca não apenas pela profissão, mas, principalmente, por ser uma espécie de elo de ligação perpétua com a serenidade que a paz proporciona. Ela é assim: seu óculo, olhos, a boca que parece lambuzada de mel de abelha “oropa”, zumbe suavidade. Zumbe por causa da postura exaustiva e constante para não demonstrar o afeto que sonega.
Acaso esta moça voluntariosa só está feliz quando se sente infeliz? A felicidade é um privilégio que nunca estará em seus planos? Deixará, acaso, a pieguice aos filhos que hão de vir para que a aproveitem como quiserem? Temo ser injusto, mas para mim, ela pensa que a vida é uma espécie de doença incurável. Letal. A alegria de viver pode ter sido feita para a humanidade. Ela não faz parte dessa farsa.
Estou de partida. Fico pensando, idealizando uma cena de despedida no saguão do aeroporto. Estou indo levando a “responsa” do orgulho do meu pai, nos ombros as lágrimas da minha mãe e no coração um sentimento de culpa por não ter insistido em caminhar pelas veredas dos buritis, sertão do caminho Sagarana. Imagino-a antes do embarque acenando para que eu me aproxime dela. Até que enfim vai me abraçar, penso. Imaginativamente tremo de emoção quando sua mão exige que eu chegue mais perto. É o beijo que ela nunca me deu, tenho a certeza. Inclino-me para receber o primeiro e, talvez, o último beijo dela. Perfeitamente controlada ela puxa-me pelo colarinho e, na ponta dos pés, abotoa-me a camisa aberta, que despudoramente mostra meu peito em palpitações, através de um único botão fora da casa. Sorridente ela me fita, agora certamente feliz por não deixar que eu parta desleixado, piorando a situação deste velho mundo sem governo e sem porteira.