Saindo do Ovo - Parte III

Observei-o pagando a conta, colocando a mochila nas costas e voltando a se reunir conosco. Desta vez ele me cumprimentou, altivo em sua ebriedade. Me olhava como se eu não fosse nada. Me olhava de cima, apesar de ser menor do que eu. Dá pra entender? Investiu mais algumas cantadas nas damas e, caralho, foi aloprado de uma forma que me surpreendeu, chegando ao ponto de ser xingado de filho-da-puta. Eu me mantinha calado e impassível.

- E você, só vai ficar quieto aí?

- Hein?

- Vai ficar com essa cara de merda aí?

- Essa cara de MERDA?

- Seu MERDA!

Era ele na minha frente, falando pra mim, com um olhar de desvario e um sorrisinho cínico nos lábios. O desgraçado mal conseguia parar em pé de tão bêbado. Mas continuava:

- Fala alguma coisa, mano!

- O gato comeu sua língua, chapa?

- Hein?

Meu sangue pulsava vertiginoso e frio - se é que isso é possível -; sentia meu coração batendo acelerado. Meus punhos, até então cerrados e dentro dos bolsos da jaqueta por conta do frio, ganharam a noite; abri as mãos. A voz do meu Mestre ecoava nas reentrâncias do meu crânio:

"Não quero saber de aluno meu brigando na rua! Não briguem! Se o cara xingar, beleza. Se o cara xingar a sua mãe, tranqüilo. Fiquem na boa. Se ele mexer com a sua namorada, tudo bem. Agora, a partir do momento que ele já te ofendeu e encostou um DEDO em você, pode bater. Mas você só vai parar de bater quando tiver certeza de que ele está desmaiado e pronto pra UTI. Compreenderam? Você sabem do potencial que possuem, das armas que têm em mãos. Portanto, NÃO BRIGUEM NA RUA!"

Essa era a parte fácil da coisa toda: falar.

Eu esperava o momento em que ele encostaria o dedo em mim. UM DEDO seria o suficiente para que eu o surrasse até a inconsciência. A restrição de movimentos da jaqueta era uma desvantagem e o fato do infeliz não conseguir se agüentar nem com as próprias pernas era uma outra desonrosa desvantagem para ambos.

Caralho.

Ele cuspiu mais algumas imprecações a dois palmos de distância do meu rosto e desistiu, saindo cambaleando e me xingando de tudo quanto era nome no meio da rua. De repente me enchi daquilo e fui atrás dele andando a passadas largas. Ele, andando de costas, tentando se desvencilhar da mochila (e conseguindo num último instante), acabou batendo o calcanhar na guia e caiu, batendo a nuca na calçada. Só completei o quadro com um chute bem dado na cara - conhecido dentro dos tatames e dos campos de futebol como "Tiro de Meta". Voltei pro bar e pedi uma dose de gim. Não tinha. Dia de merda.

- Agora já deu, né, meninas? Já voltei a falar com você, já suportei aquele filho de uma puta enchendo o saco; tá bom, né? Tô indo!

Pediram um minuto pra pagar a conta. A "Delicía" ficaria no ponto comigo enquanto a antiga amante subiria a rampa pro metrô.

Pois bem, despedimo-nos da amante no ponto de ônibus e ela seguiu seu caminho. Ficamos "Delícia" e eu. Ela com cara de cu.

- Desculpa?

- Relaxa.

O ônibus dela logo chegou e eu pude enfim respirar e sentir o peso dos meus ombros sendo finalmente descarregados. Mas senti dois toquezinhos nos meus ombros mais leves. Virei, já sabendo o que encontraria. Virei.

Seus olhos brilhavam. Sua mão direita segurava minha mão esquerda. Seu corpo parecia envolto em torvelinhos, de tanto que discretamente se movia. Havia um sorriso cheio de promessas quentes e seus dentes, encavalados e amarelados, ficavam à mostra; cada um deles representando cada uma das promessas.

- Eu não podia ir embora sem fazer isso - disse ela, fechando os olhos e avançando nos meus lábios.

Interrompi o percurso de seu rosto com a minha mão direita espalmada, cobrindo-o; empurrei-a levemente.

- Cai fora - falei.

O sorriso se desmanchou por um instante e houve um baque no brilho de seus olhinhos pretos de hiena. Por dentro do meu corpo, um regozijo maravilhoso. Por fora, pura indiferença.

- Eu sei que você quer! - Ela insistiu.

- Sossega e vai pra sua aula.

- Vai... Só um beijinho?

- Não.

- Eu sei que você quer! - Repetiu.

Fiz a minha cara de lhama. Cocei a nuca. Vontade do caralho de dar na cara de gente obstinada que não sabe o que significa um NÃO.

- Você não precisa mais dela.

- Ela já foi.

- Ela foi embora.

- Ela não te quis.

- Eu estou aqui, vem, me beija!

- Eu sim, gosto de você!

- Ela voltou pro ex!

Ônibus paravam. Dezenas de pessoas amontoadas olhando. "Ela voltou pro ex!".

- Você tem que gostar de quem gosta de você!

- Eu quero você!

- Sempre quis!

Voz mansa. Olhinhos brilhando. Voz rouca, sensual, sedutora. Resolvi falar.

- Escuta, eu tenho amor por ela. Você sabe o que é isso?

- Você sabe o que é isso?

- Eu descobri o que é isso com ela.

- Que foi embora.

- Embora pro ex, a puta.

- No entanto, não preciso de você.

- Do seu carinho, do seu rabo.

- Entendeu?

Silêncio. Sentindo-me perverso.

- Me dá um abraço, então?

Ai, caralho!

Dei o abraço. Tentou outro beijo, claro. A Leonina Obstinação!

- Olha... Meu ônibus. Fui - e vazei.

*

"Por que a vida é assim, e não assada?", me perguntei, com a cabeça recostada na janela do ônibus. Seguindo aquele caminho idiota de sempre, voltando ao lugar que eu não deveria nunca ter saído, indo atrás de um pedaço de rabo que só soube malograr meus sentimentos mais verdadeiros.

A velha cama de solteiro. Tão acolhedora! A derrota premente já deixando-a aquecida. Abri a velha gaveta de meias. Joguei duas drágeas na boca e deitei. Dormi.

(Continua)

20/05/2011 - 11h58m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 25/05/2011
Reeditado em 25/05/2011
Código do texto: T2993473
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