Poltrona carmesim

No domingo, lá estava tudo, assim como todos os outros dias, na estante, jogado as traças, as fotografias de alguns momentos bons, um cinzeiro, cheio de pedaços do pulmão, a poeira sobre radio a pilha velho e gasto, ali só de enfeite nos últimos anos, a televisão que ainda passava as imagens em apenas duas cores e seus vários tons, ligada a energia por meio de um monte de fios, alguns que ninguém sabia a verdadeira utilidade. A verdade é que ninguém sabia nada, nada de nada, mesmo fingindo saber um pouco de tudo. E sobre a poltrona carmesim, velha e já com espuma de fora, ele descansava os olhos, já branco, imóvel, o renegado.

Com o tempo chegaram algumas pessoas, as crianças se acomodaram em frente à tela velha que transmitia a imagem indefinida, uma mulher se aproximou do corpo imóvel, para certificar-se que realmente estava de olhos fechados, e com alivio tirou os olhos dele e correu para fazer que lhe cabia naquele dia. A mesma rotina, já há dezessete anos, chegava, arrumava e partia, no começo fazia também de enfermeira e servia o almoço ao velho, mas depois de cinco anos o encontrou cochilando, então deixou para que o próximo que viesse o alimentasse, não se demorou por mais que trinta minutos, arrumou a cama de solteiro, lavou a louça que deixaram da noite passada, fez arroz e fumou um cigarro, as crianças podiam ter problemas de visão se continuassem a ver aquela tela borrada, então foi-se.

Depois de mais um tempo chegaram os próximos, esses sem crianças, apenas o homem corpulento e a mulher que parecia ter perdido as tripas em algum canto, estes terminaram de preparar o almoço, a mulher pelo menos, o homem se ajeitou em frente a tela borrada e assistiu o jornal, saíram os dois em menos de meia hora, depois de fumarem um cigarro cada, e deixaram para que o próximo desse de comer ao velho, que permanecia imóvel, estático, na poltrona carmesim.

A outra não demorou-se, chegou como um furacão e foi logo arrumando o que lhe cabia, varreu o tapete velho cor de folhas de outono, chacoalhou as toalhas do lado de fora, deixou um café forte pronto, do qual tomou dois dedos, e se foi, deixando de lembrança apenas as cinzas do cigarro que fumou.

O próximo demorou mais, chegou depois que o Sol já estava por se recolher, certificou-se que o velho ainda dormia, buscou pelos potes da estante algumas moedas e se foi, levando pouco mais que dinheiro para comprar alguns pães.

A ultima era a mesma que veio logo cedo, viu que o velho ainda dormia e apenas se certificou se tudo estava em ordem para o dia seguinte, sempre quisera saber quem vinha depois dela, que deixava as coisas como estavam por cedo, foi-se sem fumar.

Depois que a porta se fechou os olhos do velho se abriram, a verdadeira porta daquele lugar finalmente fora aberta, o velho se levantou, olhou ao redor, trancou a porta da frente, foi até a cozinha, se serviu de uma xícara de café frio, comeu não mais que algumas migalhas de pão, foi até o quarto, pegou sua jóia preciosa debaixo do colchão, voltou a sala pegou um dos retratos da estante, um que mostrava uma moça, de vestido claro e forma delicada, sentou-se na poltrona carmesim, limpou a poeira do porta-retrato com a manga da camisa. Imaginou como seria o fim, como seria a dor, o que sentiria, descansou a jóia na têmpora direita, e depois de um som ensurdecedor, simplesmente parou de sentir. E todos aqueles que tanto tinham para fazer durante o dia passaram a ter tempo para fazer nada.

Amanda França
Enviado por Amanda França em 24/05/2011
Reeditado em 26/05/2011
Código do texto: T2990434
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.