Saindo do Ovo - Parte II

Encostamos os três na mesinha em que ela estava. Levantou o olhar e nos brindou com um sorriso falsamente tímido e fez troça com meu comparsa.

Eu odiava botecos. Eu odiava aquela situação que eu havia me colocado. Odiava o mundo, os ônibus, as mulheres e seus cigarros de ponta avermelhada que tanto me lembravam a causadora dos meus infortúnios.

A situação, como era de se esperar, virou um completo e entediante desastre: as duas, já ficando altas de tanta cerveja, passaram a falar groselha atrás de groselha, soprando a porra de suas fumaças de cigarro em nossas caras e gargalhando alto, atraindo olhares dos peões das mesas adjacentes.

Meu amigo abandonou a barca se despedindo de repente já saindo na caminhada sem nem olhar pra trás. Acabei sobrando, com aquelas duas derrotadas. Se bem que eu também era um derrotado. Estava em casa.

Daí aconteceu o inevitável.

- Por que você parou de falar comigo, seu canalha?

- Eu não parei de falar com você; só te mandei calar a boca e você ficou puta e virou a cara.

- Ah, lógico, tá me tirando?

Vou resumidamente elucidar a história: aquela que havia me abandonado fazia viagens constantes e duvidosas. Eu ficava largado na São Paulo caótica, baladeira, opressora e efervescente de hormônios, conjeturando mil coisas sobre o paradeiro da mulher que havia finalmente fisgado meu coração e acalmado meus ânimos e a conclusão era sempre a mesma: eu era um amante. A porra de um amante, a porra de um emergencial e próximo pau duríssimo de atleta de pulmão aberto. Numa dessas viagens - esta em particular já durava duas semanas e era uma viagem de férias -, eu morria de tédio num sábado à noite quando essa garota do bar me convidou pra colar num samba-rock com uns amigos descolados e uspianos dela. Acabei indo, crente de que nada aconteceria, e, bem, acabamos dando uns pegas no meio do salão. Ela era realmente quente, tinha pegada, sabia o que fazer com as mãos, com os quadris, com língua e tudo o mais. Enfim, era pra ser só esses beijinhos de uma noite e nada mais, já que todos trabalhávamos no mesmo andar. Porém a tal viagem perdurava e minha amante parecia ter a pomba-gira no corpo: ela chegava perto com seu perfume e eu já ficava atiçado. O engraçado é que não havia remorso. Bem, minha garota voltou e, com ela, a normalidade dos dias. A outra ficou pra escanteio, como ela mesma já sabia que aconteceria. Mas não houve aceitação e muito menos respeito. Logo as minhas dedadas na virilha dela na escada de emergência cairam nos ouvidos de quem não deveria e uma madrugada inteira de discussão me rendeu uma dor de cabeça dos diabos no dia seguinte. É, eu tinha errado; errado feio. Mas, e ela? Sabíamos que esse toma-lá-dá-cá só nos levaria ao fim próximo e a um ódio amargo, mas continuávamos trocando as farpas e sopesando os erros um do outro sem chegarmos a conclusão alguma de como deveríamos resolver nossos problemas e nos mantermos unidos, firmes, fortes e respeitadores. Sempre suspeitei que a base daquele relacionamento era a confusão. Resumindo a ópera: trocamos perdão e prometemos sermos menos irascíveis e temperamentais. Mas um fulano que muito figurava nas nossas discussões veio do interior a negócios e precisava passar uns dias na casa dela. Dias estes que eu não dormi por lá. Dias estes que mal nos falávamos no trabalho. Dias estes que fui ignorado por quem tinha amor. Dias estes que fui ignorado por quem dizia que tinha amor por mim. E eu contava tudo para as minhas amigas. E a notícia corria. E caiu nos ouvidos daquela minha amante. E caímos os dois no quarto de um motel cheio de areia no chão e trepamos, trepamos muito. Eu nunca havia fodido alguém com tanto ódio nos dentes: dei murro na testa, puxadas de cabelo sem a mínima piedade, tapões no rabo, dedadas no cu, pintadas na cara, gozada na boca e tudo o que concerne um sexo selvagem com quem não vale nada - ou, pelo contrário, com quem muita valia tem. Foi aí que ela se apaixonou e eu me fodi. Acabei dando com a língua nos dentes com a namorada e fui botado pra fora do apartamento dela com cinzeiros zunindo na minha orelha. Mas tudo ficou bem, como sempre, e dessa vez foi a amante quem se fodeu. A ocasião em que eu a mandara calar a boca era comum, já que ela tinha o mau hábito de honrar a maldita descendência italiana e falar mais do que a boca e acima dos decibéis aceitáveis para a convivência pacífica e eu tinha o mau hábito de não ter paciência com gente prolixa e escandalosa perto de mim.

E agora que meu romance estava findo, ela queria me perdoar pela grosseria.

*

Eu já vinha observando esse cara, um alemão ancorado no balcão do bar mamando todas e lançando olhadelas na direção do rabo das minhas pseudoamigas. Eu, querendo morrer. Dado momento, ele saiu da cadeira e veio ter com a outra. O fulano estava chapado de cerveja e rabo-de-galo e ainda conseguia ser sumariamente ignorado por uma nada-beldade daquelas. Desistiu dela e veio dar em cima da que estava comigo, sumariamente ignorando minha presença. Tomou lá suas respostas mal-criadas e acabou voltando ao seu balcão. Secou um copo de cerveja, pediu outra dose de rabo-de-galo e a tomou de um só gole. Depositou o copo no tampão de mármore escuro e olhou diretamente pra mim, com ar de zombaria e desafio.

Era o que me faltava. Era SÓ o que me faltava.

(Continua)

20/05/2011 - 09h35m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 20/05/2011
Reeditado em 20/05/2011
Código do texto: T2982360
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