Saindo do Ovo

"Derrota do caralho", pensei. Ela se trocava, enquanto eu ficava olhando do teto para sua bunda enorme. Uma bunda que eu jamais voltaria a tocar, apalpar, morder, lamber, enfiar a cara no meio e encoxar em noites frias. Tínhamos trepado pela última vez e eu continuava largado na cama do mesmo jeito que acabara gozando: braços cruzados na nuca e o pau mole caído pra esquerda.

- Se troca logo, senão vou perder o ônibus.

Dirigi o meu irritante olhar de camelo e pisquei umas três vezes. Ela explodiu, como era de se esperar:

- Vai logo, caralho!

Havia uma valise aberta no pé da cama. Assim que usava os cremes e perfumes, os depositava dentro da tal valise. Depois que acabou toda a besuntação, fechou aquela porra.

O real problema era que tudo era bem mais do que cenas de implicância, nudez natural, e sexo antes de dormir e depois de acordar: havia amor. E ódio. Muito ódio.

Todo e qualquer movimento ali, eu sabia, seria o último.

Fui até o banheiro com uma toalha enrolada na cintura e me esfreguei com aqueles sabonetinhos de glicerina pela última vez. Olhando as calcinhas penduradas no ferro da cortina pela última vez. Olhei a privada... Tantas missões durante a madrugada!

Trinta minutos depois subiamos a rua em silêncio, indo até o metrô. Embarcamos ainda em silêncio. Vinte minutos antes havíamos tido uma discussão sangrenta, com copos voando e mala aberta sendo jogada do segundo andar e tudo o mais. A última briga.

Saltamos na estação que é interligada à rodoviária. Eu vivia um misto de sonho e pesadelo: uma amálgama de antes e depois; de passado e futuro; de primeira e última vez. Claro que não conseguia racionalizar tudo e, na confusão mental que me encontrava - procurando respostas dentro de um Dédalo de perguntas - acabava ficando indiferente para o mundo. Ela não apreciou meu "sangue-frio" e fez de tudo para começarmos outra discussão.

Despedimo-nos diante do ônibus que a levaria de volta à nova vida velha. De volta aos velhos hábitos, de volta ao desgaste. De volta ao conforto, à segurança; de volta à estabilidade financeira que eu não podia oferecer.

Contemplei o ônibus saindo de ré e manobrando em direção à saída. Ela chorava, me olhando.

"Como mulher é filha da puta!", pensei, com o coração partido e com os olhos marejados de lágrimas de amor e ódio.

Então, ela se foi.

*

- E aí?

Eu não queria falar. A coisa toda se resumia naquela música do Tim Maia: "Ela Partiu".

- Não gosto de ver você assim... Conversa comigo, por favor!

E meus olhos, redondos e castanhos, pendendo pro verde, ficavam pesados de repente. Se eu começasse a falar, desabaria em lágrimas. Um fulano conhecido por ter a canelada mais potente numa academia de muay thai com mais de cem alunos matriculados não poderia ser visto chorando - eu tinha lá uma reputação a zelar.

Mas aos poucos consegui ir progredindo na narração daquelas últimas horas ao lado da mulher que eu amava e odiava. Que eu não suportava e não conseguia viver sem por mais do que dois dias. Lá pelo meio do expediente eu já havia desabafado tudo e me sentia realmente melhor; já fazia piadinhas de humor negro, falava mal das mal-comidas, largava o Nextel que era meu instrumento de trabalho falando sozinho pra ficar pendurado na mesa de alguma gostosa e tudo o mais.

Como era de se esperar, a notícia se espalhou pelos dois departamentos que dividiam o andar. Eu trabalhava em um e a tal mulher da minha vida trabalhava no outro.

Pelo final do expediente a bad trip voltou com a constatação de que eu estava novamente sozinho na porra do Planeta Terra.

Era uma sexta-feira de inverno e fazia frio demais. Saí do prédio tiritando e coloquei uma jaqueta por cima do moleton com touca e com a estampa do grupo de luta que eu fazia parte. Tal jaqueta era de um número menor - presente da namorada que havia me abandonado pela manhã - e restringia os movimentos dos braços e conseguia encher o saco com isso - mas havia custado um preço que eu não poderia ter pago e esquentava bem. Pois bem, estava com um amigo indo em direção ao ponto de ônibus, caminhando na calçada que havia uma passarela que seguia por cima de uma famigerada avenida e levava até o metrô, quando surgiu uma silhueta familiar se interpondo em nosso caminho e cortando a nossa conversa sobre as bucetas ingratas que cruzavam nosso caminho.

- E aí? Pra onde vocês estão indo?

- Pra casa? - Devolvi a pergunta.

- Pooorra, sexta-feeeeeeeira - ela volveu, com um copo de cerveja na mão e um cigarro na outra - toma uma ali com a gente.

O "a gente" se resumia a ela - que se achava uma verdadeira beldade, quando não passava de um amontoado de acne, gordura e maquiagens espalhafatosas - e uma outra garota, que estava sentada no boteco escroto que ficava do outro lado da rua, fingindo que estava falando no celular, dando ares de que não sabia o que estava acontecendo com o outro "a gente" - que éramos nós três.

Logo captei o que elas haviam tramado.

- Não gosto de boteco - falei.

- Eu sei - ela disse, com ar reticente - Mas - continuou - fica um pouquinho vocês dois, já já ela vai pra facul e eu tenho que ir embora cedo também...

- Já falei - repeti.

- Meu, vou jogar a real - disse ela, soprando fumaça pro alto - Por que você parou de falar com ela?

- Ela foi quem parou de falar comigo.

- Mas porque você brigou com ela!

- Só pedi pra ela calar a boca.

- Mas você sabe que ela é assim, meu... E ela gosta de você, sabia?

Eu e meu camarada trocamos um olhar. Bom, eu não estava realmente sozinho na Terra. Alguém gostava de mim.

- É, eu sabia... - respondi.

E atravessamos a ruazinha em direção ao bar.

(Continua)

19/05/2011 - 07h25am

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 19/05/2011
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