CASAMENTO  POR  PROCURAÇÃO - 1ª  PARTE

Ser capataz numa fábrica de enlatados de peixe, numa pequena povoação à beira-mar, no sul de Angola não é fácil, não. Poderão dizer que tenho o poder nas mãos que até é verdade. O Patrão está na cidade e entregou-me tudo a mim, porque estou aqui há anos e ganhei-lhe a confiança.

Não é fácil, como digo.
Tudo me passa pelas mãos desde a qualidade do peixe, ao trabalho das mulheres no amanho dele, à verificação das latas, ao funcionamento das máquinas, aos temperos, tudo!

Não se pode confiar neste bando de inúteis que aqui trabalha com as máquinas. Alguns são ex-presos políticos da Colónia Penal de São Nicolau que acabaram as suas penas mas não querem regressar aos seus quimbos de origem. São mal pagos mas sempre é qualquer coisa... Esses, os ex-presos, são uma ameaça constante; por tudo protestam. Ora é porque trabalham muitas horas ou porque a comida é má e escassa, ou porque as instalações da Fábrica são fracas... Um não mais acabar de queixas. Que se vão embora! Ninguém os prende aqui... Muita sorte têm estes pois não lhes coube em sorte a tal viagem de helicóptero de onde não se volta. Ouvi contar, não tenho a certeza.

Vim para cá novito. Deixei tudo em Trás-os-Montes. Vida negra e dura, a dos campos secos e pedregosos... Vim com o ti Zé Manel, o da mula manca. O meu pai não quis vir, à minha mãe ninguém perguntou se sim ou não. Os meus irmãos, todos pequenos, ficaram agarrados às saias da mãe. Ela fartou-se de chorar quando vim. O meu pai? Nem o vi nesse dia. Talvez na taberna.

O ti Zé Manel tinha carta de chamada e podia trazer um menor e foi assim que viemos. De Luanda seguimos numa boleia de uma camioneta de carga que ia até ao Dondo. Pensámos arranjar trabalho ali. Perguntámos e havia quem precisasse de trabalhadores numa roça de café perto dali. Veio o encarregado da roça e fomos ter com ele. Que sim. E lá fomos. Ao fim de mais ou menos um mês o ti Zé cai à cama com umas febres altíssimas, dores e tremores no corpo todo! Foram buscar o médico do Dondo e ele disse apenas: "Paludismo". Quinino era o único tratamento. Não resistiu...

Pouco mais era que um adolescente e vi-me sozinho numa roça de café nas matas do Dondo... E ali cresci e me fiz homem.

Queria conhecer mais e disse-o ao meu patrão, um alemão alto e gordo que às vezes ia lá à roça com a família. Ele pagou-me tudo e levou-me ao Dondo onde eu poderia escolher o meu destino: regressar a Luanda e tentar a sorte por lá, ir para o Leste até Malange ou até mais longe, ou ir para o Sul. Escolhi ir para o Sul.

E assim fui descendo para sul... Um ano e tal em Nova Lisboa, empregado num armazém. Depois falaram-me no porto do Lobito, carregar e descarregar a carga nos barcos, que pagavam bem. Lá, conheci o Pereira que era de Benguela e tinha um barco de pesca. Fui com ele e com ele andei na faina no barco mas ao fim de pouco tempo fui trabalhar numa fabriqueta de conservas de peixe.

Foi duro mas aprendi todos os segredos. Era o melhor em tudo: bom olho para escolher o peixe, o cortar do tamanho certo. Comecei a ver como se faziam os temperos. Depois das minhas horas de trabalho ia ver como funcionava a fábrica. Muitas vezes fui eu que, na hora certa evitei um azar ou até mesmo um desastre, como quando daquela vez eu reparei que havia demasiada pressão nas autoclaves, as cubas estanques de cozedura e por pouco não explodia tudo!

Foi nessa altura que me ofereceram o lugar de capataz nesta Fábrica.

Angola precisa de desenvolvimento; há uns meses houve um levantamento com fuga de uns presos nos arredores de Luanda que terminou com um banho de sangue no Cemitério do Terra Nova e que deu origem à revolta, em 1º lugar, dos trabalhadores das roças de café. Em poucas horas se percebeu que mais população estava envolvida. Apanhados desprevenidos, os brancos foram mortos às centenas, homens, mulheres e crianças. Rapidamente se armaram e ripostaram... Chegaram as tropas da Metrópole... Neste momento há guerra de guerrilha no Norte e Leste. Aqui apenas se nota porque há mais presos em São Nicolau.

Pouco estudei, apenas a escola lá na terra. Dá para escrever à família de vez em quando.

Ando a pensar em casar. Fui a Moçâmedes mas as raparigas de lá são muito peneirentas e mal para mim olharam ou falaram. Muito bem vestidas e penteadas... Falei com o sr Padre e ele aconselhou-me a casar por procuração, com alguma da terra. São boas moças, trabalhadoras e não são vaidosas como estas de cá. Ele próprio se ofereceu para escrever ao Pároco da minha aldeia.

Estou à espera da resposta...

Beijinhos
Teresa Lacerda
Enviado por Teresa Lacerda em 16/05/2011
Código do texto: T2973511
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