Lição

Certo dia, nos idos de 1991, deslocava- me do Cabula para o Centro da cidade com minhas duas filhas. A mais nova com destino à Escola Arco Íris, na Ladeira do Acupe de Brotas, e a mais velha para o Colégio Marista no bairro do Canela. De lá, seguia para o meu local de trabalho no Largo dos Aflitos.

Após deixar a caçula na Escolinha, segui meu roteiro diário rumo ao Colégio Marista para deixar a filha mais velha. Lá cheguei com certo atraso em razão da lentidão do trânsito no Vale do Canela. Parei o carro em frente à escola, a menina saltou e o solícito porteiro a conduziu para dentro daquela instituição de ensino.

À minha frente havia um automóvel parado, sem motorista ao volante, bloqueando totalmente o trânsito. As faixas da direita e a da esquerda estavam ocupadas por veículos de pais de alunos, estacionados sem preocupação com o direito de livre circulação das demais pessoas.

Vocês sabem como funciona o tráfego de veículos em frente às escolas! É uma balbúrdia só. As mães – elas principalmente - e os pais dos pimpolhos usam e abusam do direito de transgredir a legislação de trânsito. Estacionam em fila dupla e deixam, algumas vezes, o veículo com a traseira invadindo a única faixa livre, impedindo a fluidez do tráfego.

Eu já estava bastante ansioso perante aquela situação. A ponto de botar um ovo, como popularmente se diz. E o condutor do veículo que bloqueava a única faixa de trânsito disponível (possivelmente um médico, devido aos trajes alvos) continuava na dele, encostado à grade do colégio, despedindo-se da sua pequerrucha. E tome beijos... E mais beijos... E alisava o rosto da filhinha... E beijava novamente... Uma cena até certo ponto comovente. Todavia, imaginem como era estressante, mormente para quem já estava atrasado para o início da jornada de trabalho.

Buzinei insistentemente, gesto este seguido por inúmeros motoristas também aguardando à minha retaguarda, esperando que o folgado pai percebesse o fato de estar atropelando o direito de terceiros e, assim, desbloqueasse a rua. Para meu espanto, o espaçoso senhor somente quando bem quis e entendeu retornou ao seu veículo e, antes de entrar no automóvel, olhou-me com cara de poucos amigos. Num arroubo de descabida petulância, vociferou:

- O que é que você quer palhaço? – disse sem qualquer cerimônia.

Confesso: o sangue ferveu dentro do corpo e a vontade que me veio de chofre foi a de esganá-lo pelo atrevimento. Porém me contive, não sem antes devolver o insulto, na mesma intensidade.

- Vá pra ponte que caiu, seu folgado! - respondi.

Pasmo ante minha pronta reação, o insolente pai deu partida ao veículo. Saí na sua cola e na primeira oportunidade o fechei, fazendo-o parar encostado ao meio-fio. Cena típica de filme americano. Desci do meu carro, fui à sua direção e lhe dirigi mais alguns desaforos. Ele não esboçou qualquer reação. Amofinou-se. Dei então a pendenga por encerrada e fui célere para o trabalho, pois o dever me chamava.

No dia seguinte repetia com minhas filhas a mesma rotina quando, nas imediações do Candeal o volante do carro, que eu havia mandado balancear e alinhar dias antes, se desprendeu da coluna de sustentação e ficou solto em minhas mãos. Bastante aflito, frente ao inusitado da situação, o joguei no banco do carona e tentei guiar o veículo segurando o cotoco da haste na qual o volante fica parafusado.

De nada adiantaram meus esforços. Senti-me, naquele momento, como um náufrago agarrado a uma tábua lutando desesperadamente para se salvar do afogamento. Para minha felicidade, o trânsito na área estava lento - cerca de 40 quilômetros por hora -, proporcionando-me a lucidez de ligar o pisca- alerta e, com o braço esquerdo, sinalizar. Com isso, os veículos que tentavam me ultrapassar pela esquerda deveriam reduzir a velocidade.

Fui freando suavemente e o veículo ganhou a margem esquerda da pista até se chocar contra o meio-fio. Aí começou o meu dilema propriamente dito, porque Thamires, minha caçula, à época com três anos, e a mim muito apegada, não queria ficar dentro do carro enquanto eu colocava o triângulo de advertência.

Eu suava frio em razão do sufoco de tentar consertar o carro naquela via movimentada e, ao mesmo tempo, controlar as duas crianças. Naquela situação, tanto era perigoso elas ficarem dentro do carro quanto fora deste. Isto contribuía para me atormentar ainda mais.

Agachei-me tentando instalar o triângulo, preocupado, contudo com as meninas na calçada. Neste momento, um veículo amarelo parou à frente do meu. Não dei a menor importância ao fato e continuei na árdua missão de instalar o acessório. Para minha surpresa uma voz irrompeu à minha retaguarda!

-Está precisando de ajuda, companheiro? - falou-me uma pessoa, cuja voz não reconheci.

Ergui a cabeça e me voltei para a direção de onde vinha a desconhecida voz. Confesso ter sido tomado de grande sobressalto ao me deparar com o indivíduo com o qual eu havia tido uma séria discussão no dia anterior na frente do colégio. A minha reação foi instantânea e logo o inquiri:

- Não tivemos uma discussão ontem camarada?! - perguntei bastante sisudo.

- Tivemos sim - respondeu ele. Mas agora quero ajudar. Posso? Vejo que você tem uma filha na Escola Arco-íris e outra no Colégio Marista. Eu também tenho um filho na Arco-íris e uma menina no Marista. Estou indo para lá. Observo ainda que o companheiro se encontra em apuros. Diante disso me proponho a levar suas meninas para a escola, enquanto você tenta resolver o problema de seu carro - argumentou.

Ainda meio ressabiado pelo acontecido relutei intimamente em entregar minhas filhas para que o meu mais recente inimigo as conduzisse até a escola. Porém, diante do sufoco pelo qual eu passava e após ter constatado naquele momento o fato de ele realmente ter um filho estudando na escola Arco-íris (porque a do Marista, em razão da rusga tida no dia anterior, eu já sabia que estudava lá) acabei por sucumbir à argumentação de meu desafeto e lhe entreguei Tâmara, a mais velha, permitindo que ele a levasse ao colégio. Já a caçula, sendo a mim muito apegada, nada a fez embarcar com o desconhecido.

Minutos depois um amigo passou pelo local onde eu estava e, a me ver naquela situação vexatória, emprestou-me o carro para conduzir a caçula Thamires até a escola Arco-íris, comprometendo-se ainda a levar meu veículo até o meu trabalho, fazendo isto com muita presteza.

Depois de todo o ocorrido conclui: “quem tem amigo na praça, tem dinheiro no caixa”. E nunca devemos ser rancorosos com os nossos desafetos, porque um dia eles nos podem ser úteis. Essa é a fidedigna constatação à qual humildemente me rendo.

Fica a lição.

Conto publicado no livro "O Homem que Invultava e Outros Causos" de minha autoria, em 2008.

Valmari Nogueira
Enviado por Valmari Nogueira em 16/05/2011
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