Nenhuma semelhança é mera casualidade

Ruminava idéias boi andando na invernada mirando a paisagem. Andava lento, mas tão seguro, nada de olhares furtivos para ver quem vinha, nada de apreensiva espera. Era transitório, mas nem por isso deixava de ser permanente. Ruminava idéias: na casa sempre era difícil pensar, o tempo todo ocupado, mãos, pés, cabeça, o corpo, tudo ocupado por todos. Agora, se um pé de vento varresse a terra, quem estaria seguro onde? Mãe sempre diz: a vida é assim, assim; pai tão resignado na sua religião: pobre, mas honesto, orgulhoso, tão boi quanto. Irmãos na mesma toada. Segue caminho do pai, o menino. Trilha os passos da mãe, a menina. Lengalenga cotidiana na cabeça: Deus quis assim. É o destino. A terra é um vale de lágrimas. Os meninos cresciam (barrigudos, amarelos, remelentos) e a terra começava a comê-los devagarzinho, antecipadamente... Os que sobravam (é doentinho, mas resistente, mãe fala para comadre. “Madrinha, tem um dinheirinho?”) E o ‘doentinho’ olhava de um modo tão... tão cheio de pena de si mesmo, que comadre também se condoia: “Igual ao avô, doente, mas viveu tanto tempo... Viveu ou penou? Às vezes a gente tem umas idéias... Parece que já morreu e só está purgando, purgando.”

Cresciam as idéias e inchavam a cabeça e tinham que vazar pela boca... E ruminá-las é um exercício altamente recomendado por todos. O ato de ruminar vai transformando-as, remexendo-as, aprimorando-as. Pai não pensa assim: só rumina uma idéia: levantar/trabalhar/dormir/acordar/ e um dia não. Mãe precisa ruminar em silêncio, principalmente quando lava a roupa, disfarçando assim idéias tristes, que fazem misturar água doce do rio com água salgada dos olhos... Mãe rumina futuro obscuro, fartura, alguma regalia na velhice.

Procissão: todos seguem os mesmos passos, diferenças tão sutis que não se percebe. Morre um, outro já se instala, sem demora, para continuar o mundo. Por isso o mundo não se acaba nunca... Quem será o último a assumir a semelhança? Ruminava tudo isso boi no sol, boi na chuva, boi na lama, boi no seco. Pai nunca foi tão longe. Mãe, se uma idéia aparecia mais de uma vez, rezava ave-maria e padre-nosso. “Não é bom conviver muito com as idéias”, diziam especialistas (professores, padres, adultos sabidos).

“Você tem que seguir as pegadas do seu pai, da sua mãe”, esse era o lema. Há tanto tempo (milênios) que ninguém erra. Pai sempre tem razão. Para que procurar sarna para se coçar? Já não chega ter que comer o pão com o suor do teu rosto? Mas as idéias parecem um filete escorrendo, primeiro de mansinho, sem pretensão, depois regatinho, corregozinho, ribeirãozinho, riachão, marzão, despencando em cascatas, quedas d’água, pra jorrar/esguichar/espraiarem, espumantes (pela boca).

Ruminava boi no pasto sol esquentando pai puxava arado mãe lavava roupa no rio filhos ajudavam no que podiam ou morriam, ou ruminavam vida diferente e iam criar filhos, ruminar idéias, continuar o mundo.

Geni Alves dos Santos

Geni Alves dos Santos
Enviado por Geni Alves dos Santos em 11/05/2011
Código do texto: T2963921
Classificação de conteúdo: seguro