O Recheio

O dia estava vazio. Ela estava vazia. Tudo parecia sem graça e sem vida, parecia que estava tendo uma de suas recaídas. Malditos acontecimentos inesperados que nos pegam por trás, pela frente e lados e nos deixam sem reação.

"Vou fazer bolo de fubá!" - só sua mãe sabia como ela amava, era um bolo tão simples que caia no esquecimento até dela mesma. Não era fã daqueles muito enfeitados com glassê nas bordas e recheio trufado.

Como era gulosa usava um pouco a mais do que o normal das receitas de sua mãe e avó. Punha às vezes um ou dois ovos e meia ou uma xícara a mais de açúcar, farinha, fubá e leite, mas tudo sempre medido pra que nada desandasse. Possuía até um tabuleiro bem fundo pra essas suas receitas exageradas, por que com ela era assim, tudo exagerado, tudo transbordante...

Ao preparar a receita a distração da culinária a fez desviar um pouco do vazio em seu peito, do rombo que fora deixado para que ela contemplasse em seus momentos de solidão e jamais esquecesse mais uma das muitas lições da vida. Infelizmente pouco demorou até a massa ir ao forno e muito ainda demoraria até o bolo ficar pronto, apesar de que não levaria nem uma hora para isso, mas todos sabemos que tempo é algo relativo...

"Einstein, seu filho da puta..." - resmungou consigo, em seguida mergulhou de novo num silêncio incontido.

Vazio.

Quarenta minutos depois e o bolo estava pronto. Retirou-o do forno e nem se importou dele estar quente. Cortou um pedaço esfumaçado ali mesmo frente ao fogão, depois deu uma mordida ardida que a fez ficar mastigando de boca aberta enquanto via aquele vapor fumegante saindo de sua e sentia o calor intenso queimar sua língua ao mesmo tempo que saboreava o gosto das bordas queimadas e das partes internas que estavam no ponto, intactas. Queimara um pouco a língua, mas valia a pena e não se importava. Deu novas mordidas e comeu mais dois pedaços, mas dessa vez soprando antes de morder para não queimar a língua mais ainda.

Gostava do bolo de fubá por ele não ter recheio, era como se o recheio corrompesse o gosto original do bolo, como se o recheio acrescentasse algo que não precisa ser acrescentado. Bolos deviam ser bons pela sua massa em si, não pelo recheio. O de fubá não era como muitos outros que se faziam bons apenas por ter recheio. Não, o bolo de fubá não era assim, ele era único por que era bom sem precisar de um conteúdo. Também adorava o fato de que ele ia se esfarelando na medida que era comido, e depois de cheia ela catava os farelos com o dedo para degustá-los, pois eles não a encheriam mais do que ela estava. Pura gula.

Satisfeita, sentou-se na mesa e tornou a silenciar-se em seu íntimo de solidão. Sentiu-se tomada por uma angústia interna maior ainda que antes, talvez pelo bolo não ter tapado o vazio que ela queria. Sentiu até uma repentina vontade de jogar o bolo todo fora por puro ódio, mas achou que isso seria tão insignificante que ignorou tais vontades.

Agora reparava uma verdade irrefutável... Seu corpo podia estar preenchido, mas sua alma continuava sem recheio. Ela era o bolo que ela mesma fizera.