A MÃE DE MAURÍCIO
A lua hoje parece que brilha mais que o de costume. Está toda inteira à vista, num tom prateado, capaz de nos deixar boquiabertos a admirar tão bela obra de Deus. Da janela de uma casa simples, bem longe do centro da cidade e com uma vista para uma fazenda logo à direita e as luzes da cidade ao longe do outro lado, Lúcia contempla a noite. Será uma longa noite, de terça-feira em que ela não vai dormir direito. Em sua cabeça repassa uma lista que na quarta de manhã ela tornará concreta em uma sacola de plástico: bolachas recheadas, ingredientes para um bolo recheado de amor, cigarros, biscoitos, pasta dental, sabonetes, refrigerantes... a lista parece interminável. Enquanto a lua vai-se indo embora no seu caminho natural, Lúcia não percebe o tempo passar. Não está frio, pensa ela. Que bom, meu filho está mais confortável hoje. Quantas noites naquela janela ela não contemplou uma chuva torrencial ou um frio insuportável a pensar no filho que poderia estar precisando de seu calor. Às vezes uma lágrima escapa daquele rosto de olhar fixo e penetrante no vago da noite silenciosa, que logo é enxugada com mãos enrugadas de tanto trabalhar dias e noites para sustentar a casa com dois filhos, um neto abandonado pela mãe que foi embora e ainda poder oferecer ao filho que não está sob seus cuidados um pouco de dignidade. Mulher forte, não se deixa abater pelo cansaço e perde-se em pensamentos, ora práticos, ora livres e soltos como os peixes do oceano, indo e vindo pra todos os lados. Quanta coisa passa pela cabeça dessa mãe. São tantas as preocupações que afastam o sono, multiplicam o cansaço e vai minando aos poucos seu descanso. Há muito o que fazer no outro dia, há que ver se o filho está mais gordo ou não; se o filho está mais sorridente, ou não; se o filho está dormindo direito, ou não; se isso, ou não... Perdida em seus pensamentos, a mãe não percebe a chegada da madrugada. Só percebe o momento de deitar-se um pouco para recarregar as energias quando a rua silencia de todo, as tvs dos vizinhos se calam e o barulho dos que dormem tarde cessam. Aí ela se dá conta de que, mesmo sem ter sono é hora de rezar seu terço de todas as noites para tantos pedidos e dormir, ou tentar.
O ônibus parou, como pára todos os dias neste mesmo lugar. Mas hoje é quarta-feira. Apenas mais um dia. Estou a caminho do trabalho como faço todos os dias no período da tarde. São agora 12:30. Lúcia desce alguns quarteirões antes do presídio. Na transparência de uma simples sacola de supermercado se pode ver biscoitos e utilidades que ela leva, silenciosamente como em todo o seu percurso, para o filho que não pode vir a seu encontro. É assim toda semana. É a lista da noite anterior, pensada e repensada, e depois calculada dentro do seu apertado orçamento mensal, fruto de seu trabalho como doméstica e babá durante o dia, e dos bicos que faz de faxina “para fora” ou lavagem e passagem de roupa em casa à noite, depois de findo o trabalho de sua própria casa. Silêncio no ônibus e uma dor visível no rosto. Ela desce naquele ponto com suas sacolas e sua saudade, sua vontade de abraçar e de amar, sua vontade de se aproximar e não regressar. É assim toda quarta e creio que também assim o é aos domingos, dias que não viajo neste ônibus. E sei que seria da mesma forma se de visitas fossem todos os dias. Incansável, Lúcia visita o filho que, num momento súbito assaltou uma relojoaria na esperança de conseguir dinheiro para comprar uma geladeira para a mãe.
Do meu assento no ônibus acompanho toda quarta a jornada dessa mulher e fico também eu perdido em pensamentos ao observar Lúcia que observa a paisagem externa, que de atraente nada tem. Penso no que ela pensa. Sei da história, ou de parte dela porque a ouvi comentando, baixinho é claro, com voz embargada num outro dia para uma senhora que se assentou a seu lado e que falava de dor de coluna, de dor de cabeça, de reumatismo, etc... Lúcia ouviu atentamente aquela senhora e depois soltou algumas frases soltas sobre seu filho e sua vida. Estava eu atrás e ouvi, involuntariamente. Sempre a vejo e confesso que gostaria de um dia sentar-me a seu lado para conversar um pouco ou de conhecer seu filho, e saber quando sairá, e saber se ele está bem, se também sofre tanto quanto a mãe. Mas Lúcia sempre se assenta num banco sozinha. Quando entra no ônibus ele ainda não está cheio e nunca até hoje ela quis se assentar perto de mim.
Fico pensando no seu sofrimento todos as quartas e hoje percebo que ela não é a única. São muitas Lúcias que descem no mesmo ponto, algumas também com sacolas e noites de terças perdidas em pensamentos em janelas várias. Outro dia vi um “José” fazendo o mesmo. São muitas histórias e cada sacola carrega também muito amor, muita vontade de carinho e muita dor. Como são tristes suas histórias. Como parecem intermináveis e como devem ser longos os dias que antecedem as visitas. Quantas expectativas Lúcia não tem antes da viagem. Meu Deus, quantas Lúcias pelo Brasil afora carregam o mesmo fardo de estar longe dos filhos que colocaram no mundo com tanto amor.
Disse o poeta um dia que mãe não deveria morrer nunca. E eu digo que mãe não deveria sofrer jamais. Eu não vejo como é o rosto de Lúcia na viagem de volta, mas posso imaginar. Vejo lágrimas contidas durante as duas horas de visita, lágrimas sufocadas que foram abafadas por sorrisos, talvez forçados, para não deixar transparecer para o filho que ela sofre mais que ele. Vejo mãos vazias de volta e vejo a dor de deixar quem se ama para trás, sendo cuidado por outros. Vejo a mãe que quer ter nos braços o fruto do seu amor, para dele cuidar, para dele curar as feridas. Vejo a mãe que sofre, a mãe de Maurício, que um dia há de estar de volta pra casa para dar o maior dos abraços na mãe. Vejo Ana, Isabel, Aparecida, Maria da Glória. Vejo a mulher com o filho nos braços e a mão suave deslizando sobre seu rosto. E sinto. Também sinto um pouco dessa dor das mães, também lembrando da minha que já não está mais comigo, também lembrando do seu abraço e do seu carinho. E vejo no futuro um sorriso largo de Lúcia, um sorriso ensaiado, esperado e agora glorioso e me alegro por isso porque sei que vai chegar.
Enquanto isso acompanho sua epopéia semanal e peço a Deus que não deixe as mães sofrerem tanto. E rezo pelas Lúcias do Brasil a minha “oração de quarta-feira”, para que chegue o domingo da ressurreição das alegrias e do fim das viagens, e das noites na janela, e das listas intermináveis. E sonho. E espero. E espero...