Roleta Russa

“O espelho definhava a menina, como nas falas rústicas dos injustos juízes sem profissão. Sua face tornava-se flente, ela tinha raiva. Nem sequer sabia o por quê. Ela clamava ao tempo, a sua volta. Via no não-reflexo, a bondade, a calmaria, as roupas limpas, a felicidade, um reino de poeira limpa, impossível de trazer a maleficência ou então o poder bélico banalizado pelas bocas.

Apoiou-se no toucador e, a cabeça, na mão. A maquiagem borrada e os olhos incandescentes de água. A definhada abriu a gaveta da penteadeira e aliviou-se com um suspiro emocionado. Fechou-a, olhou de novo para o não-reflexo e sorriu. Olhava, invejosa, queria quebrar o espelho e sufocar a meretriz.

No móvel havia um castiçal de uma boca. O reflexo seco o agarrou, ergueu-o até em cima de sua cabeça de face irosa e, por fim, impulsionou seu braço contra o espelho. Não havia vidro, o não-reflexo fora ferido pelo castiçal em sua testa. A alquebrada passou por dentre espelho-buraco e sentou no banco à frente do toucador, admirando o não-reflexo sentar à cama estupefato e fazer um ato de reverência, agradecendo a dor em meio a pálida perfeição.

A menina ferida estendeu a mão, abriu a gaveta do criado-mudo. De lá, retirou uma bala e a colocou sobre o móvel de carvalho. O relógio, ali descansado, marcando as horas com extrema lentidão, retrocedeu o tempo velozmente.”

As coisas caíram novamente perante a realidade, ela abriu seus olhos, suas pupilas dançaram sobre as íris castanhas. Levantou; o relógio marcava a hora do balé. Esvaziadamente e já propriamente vestida, desceu as escadas até a sala, abriu a porta rangedora e partiu por dentre as ruelas para escola de dança.

Quão mais perto da escola, mais a definhada se putrefazia cabisbaixa. Ela chegou, entrou por dentre as grandes portas, foi até sua sala e dançou, dançou em plena ascensão de seus olhos que engoliam os choramingos, pelo caminho de juízes que já davam a sentença à ré. Num último movimento, ela levantou sua cabeça, fitou fulgurante em raiva, imitando os olhos do diabo, à juíza líder. As labaredas ígneas que brotavam como línguas ofídicas de seus olhos e, sibilos, de sua boca trêmula, atormentavam o júri, que, encostados na parede com seus braços coreógrafos de proteção, sucumbiam a fobia.

Seus braços se levantaram como asas e, depois, abaixaram, como em um movimento de um pássaro. Ficaram rígidos ao lado do corpo, a cabeça olhou para o teto e virou-se para o lado. Suas mãos se uniram e ergueram-se aos céus, planando sobre sua cabeça. Foi então, ela jogou-se ao chão de madeira lisa — os juízes riam da sua louca demonstração — e rastejando foi para perto de sua bolsa.

Levantou em calmaria, colocou sua mão na bolsa. De lá, retirou uma pistola, que fora engatilhado por três vezes. Na última, as balas dispararam em linha reta e pouco a pouco o júri caia, vomitando rosas. O júri acabara no chão, a arma caiu, e ela riu, riu, riu e riu, enquanto transbordava os sapos e arranhava o seu pescoço como uma louca.

Gabriel Troian Trevisan
Enviado por Gabriel Troian Trevisan em 06/05/2011
Código do texto: T2952762
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