As Mãos

Todos estes dias Letícia tem andado desconfiada comigo. Diz ela que eu ando estranho, que não me reconhece. Na verdade, a minha vida exterior não se transformou. Continuo a ir e vir para casa no mesmo horário. Continuo a gastar meus dez réis de mel coado com o mesmo método. Nada há que justifique as desconfianças de Letícia, pelo menos na aparência. Mas as mulheres, mesmo as que têm vivido sempre curvadas sobre o vazio de suas existências anônimas, têm uma intuição especial. Letícia percebe que, dentro de mim, alguma coisa mudou. E eu não lhe posso explicar, não posso dizer-lhe que vi duas mãos numa telinha, e que hoje só penso nessas mãos.... Naquelas.

Decididamente, há coisas que não se devem contar porque são muito íntimas e subjetivas (creio estar bem empregado o termo); a influência daquelas mãos sobre mim é grande, claro que é. E afinal por que? Não adiante chorar. Não adianta sofrer. As mãos surgiram na minha vida, de repente, e disseram-me assim: “ Até aqui, você julgava que tudo era fácil, evidente, corrente, correntio... Até aqui, você imaginava que, para viver, bastava respirar, ter refeições prontas na hora certa, amar, dormir, tudo ordenadinho em funções meramente orgânicas, claro.Você se enganou. Viver é isso sim – evidente que é -, mas é muito mais que isso. A vida mais viva e verdadeira é a vida que não se vê ao primeiro olhar e que não se sente à flor da pele...”

Tenho passado estes dias todos a pensar nisto. É claro que Letícia percebe que eu não estou ao pé dela quando se dirige a mim, quando me pergunta se tive muito trabalho no mister que exercito ou quando me lembra que é dia de tomar o remédio. Tudo isto são coisas que não me podem interessar nada, porque são como uma cortina. Cortina do tempo em que eu pensava que vivia para os meus atos e não pensava... que podia também pensar.

Daí, a minha convicção sincera de que estou em plena crise. O motivo é daquelas mãos, com certeza. Não me libertei delas, nem quero estar livre da sua lembrança-perseguição. É um caso curioso: tenho pensado menos nas mãos que encontrei e que amo. Mas, em compensação tenho sonhado todas as noites (e todos os dias) com todas as mãos do mundo que eu não tentei nunca apertar nas minhas, com todos os braços que nunca foram meus, com todas as palavras que, ao longo dos anos, ao longo de tantos anos, os meus ouvidos não souberam ver e os meus olhos não souberam ouvir. Quando Letícia me diz que estou diferente, que eu não sou o mesmo, já não tenho coragem de mentir para desmenti-la. Sim, mulher, eu já não sou o mesmo. Aquelas mãos, instalaram-se dentro de mim, mãos de dedos finos mostraram-me o que a minha existência até agora tem sido. E não sei já se ainda estou a tempo de trocar por outra esta vida pequena, triste, até nas suas alegrias, a que, para meu mal, me habituei.

Não. Já não vivo agora aqueles dias, iguais aos outros dias, cujos horizontes se confinavam a uma resma de papel ofício. Estou na minha mesa de trabalho e finjo trabalhar entre um monte de papéis selados e estão comigo aquelas mãos femininas de dedos longos. O meu imediato, percebendo minha absorção, aproxima-se e diz: “Então, novo bombardeio da crise em Londres, hem?” E eu penso naquelas mãos de dedos longos, finos, mãos lindas que idealizei. Bombardeio é isso. É claro que percebo o ridículo do que estou escrevendo, mas não consigo dominar-me. E, enquanto trabalho, cruzam-se as mãos e viram uma reviravolta de mãos femininas, centenas de mãos de mulheres, nenhuma semelhantes às mãos que amo, mas que já não são rigorosamente elas e ainda não são rigorosamente outras.

Letícia vai-se habituando a este estado de espírito, é já não me pergunta donde venho, quando chego a casa mais tarde e absorto fico estirado na poltrona. Mas poderia explicar-lhe? Agora subo sempre de carro até o alto da serra e olhando a linha do horizonte apenas procuro as mãos e nelas tento advinhar o segredo do olhar das mãos. Mas não há revelação, nem resposta alguma. Assim vão correndo os dias, mas já não são, como antigamente, dias iguais aos outros. Nada disso. Agora tenho um sonho à minha disposição. E vivo muito mais intensamente do que se vivesse para todas as realidades deste mundo.

Não sei como resolverei este problema. A minha vida não cabe já hoje nos estreitos limites do dia-a-dia. A própria Letícia, coitada, já não representa para mim aquela confortável doçura a que durantes tantos anos me encostei. Procuro outra coisa, que nem bem sei o que é, mas que, a pouco e pouco, se define em mim e me absorve. E tudo por causa daquelas mãos que me souberam sorrir como nenhuma boca até aí sorrira!

Nunca mais as tornarei ver? Não me importo. Elas revelaram-me um segredo, disseram-me baixinho que ao virar uma esquina da vida qualquer voz inesperada pode corresponder a qualquer apelo nosso. E o milagre desse encontro em que tudo se transformou foi exatamente a confiança nova que ela me trouxe, as portas largas da fantasia que ela me abriu e que me trouxeram o ensinamento, e que me ensinaram, para todo o sempre, a esperar.

Letícia sabe, coitada, que as mãos se me adonnaram. Ontem percebi que choramingava pelos cantos. Julga que a engano, claro, e é muito capaz de se levantar, noite alta, para me procurar na carteira qualquer foto ou carta que me comprometam. Só falta cheirar-me a roupa... Tenho carinho por ela, não pena, até porque eu contei-lhe tudo. Eu lhe disse a verdade, confiei que a engano sim, mas apenas porque sonho dia e noite com aquelas mãos, está prestes a convencer-se que estou doido, abalando a consideração conjugal que faz, há mais de uma década, o alicerce e a estabilidade de nossas vidas.

Ela fixa-me muito, a adivinhar mistérios. E eu calo-me. Á noite na cama, sinto que seus olhos assustados tentam alcançar os meus. Eu os evito, a abraço e mergulho nela. Ironias. Ela tem mais fantasia do que eu, porque conjectura enlaçada a mim toda a espécie de infidelidades. E eu não posso dissuadi-la. Quando chega a hora, ouço-a dizer baixinho, num sorriso magoado: “vem! O melhor possível.” E eu, já muito cúmplice comigo, seguro suas mãos, respondo apenas: “Sim”.

E pronto. De mãos dadas com o meu sonho eu vou. Eis o que eu não sabia e aquelas mãos me ensinaram de repente. Só somos verdadeiros, todos, daquilo que os outros não conseguem ver. Sinto que até aqui não vivera verdadeiramente. Desde aquele dia em que duas mãos me falaram, sou outro. Mal me reconheço. Compreendo que só tardiamente a vida começa para mim; ando feliz e contente do grande mistério descoberto.

É claro ninguém compreenderá patavina nem podem desculpar-me. E é melhor assim.

As mãos continuam diante de mim, conhecedoras do seu milagre, a rirem da minha revelação... Da fisionomia da donna das mãos, ocorre-me talvez útil procurar naquele corpo sentado na grama o que daria alma àquelas mãos. Penso que se reparasse na expressão do seu rosto... mas minha memória visual é tão frágil, ao contrário da minha memória interior.

Duas mãos pequenas, unhas polidas, mas não pintadas, revelam-me apenas um certo cuidado de sua donna...