O RECUO DO MAR

Depois da morte de Adalberto ela passou mais tempo observando o mar. Debruçada sozinha na sacada. Passando os dias olhando para se esquecer do companheiro. Por que compartilharam um sonho; ela e Adalberto.

Ela guardou dinheiro para comprar o apartamento, para se livrar do antigo trabalho, para ser uma aposentada no Rio de Janeiro e ver o mar todos os dias pela manhã.

Besuntada de óleo sob o sol, comendo camarão, se deixando assediar pelos garotos-de-programa. Esquecida de como era o desejo dos garotos — pretensões, aspirações de carreira, ganhar dinheiro —, ria dos garotos ao falar inglês para que eles não compreendessem. Chamar os garotos de burros besuntada de óleo em Copacabana com ares de celebridade, sentindo a dúvida nos olhos dos nativos a confundindo com alguma celebridade internacional. E tudo porque resolvera estudar, aprender inglês num tempo em que não era necessário saber, tempo em que os negócios eram mais simples com menos concorrência e opção de produtos. Por que sabia, podia fingir.

Os garotos de programa e os nativos não sabiam que ela não tinha dinheiro, que sua aposentaria era suficiente apenas para o camarão e o óleo de sol, o necessário para uma aposentada viver à beira-mar.

Fugia da areia quando atraía muitos olhares, quando vinham perguntar, lembrar o nome do filme em que ela talvez houvesse atuado. Dizia bye bye sem que os garotos compreendessem a recusa, o porquê de uma velha sozinha na areia não solicitar seus serviços.

Era a vida que ela sempre quis, a vida que sua aposentadoria podia pagar.

A intenção não era a de viver de aparências, não ser o que não era, ela apenas falava inglês e se não compreendiam não era problema dela. A intenção era viver com Adalberto no apartamento com vista para o mar.

Comprara também uma câmera para filmar os melhores momentos, filmar os traficantes no alto do morro, para documentar tudo aquilo que ela esperou muito tempo para ver da janela. Mostrar para os familiares quando, no Natal, os visitassem.

E tudo porque se aposentara. Soubesse antes, já teria se mudado, teria feito carreira naquela cidade.

Mas as coisas só faziam sentido quando ainda havia Adalberto.

Sem Adalberto, se sentia sozinha debruçada na janela. O dia-a-dia se resumia em ver o mar. Mais que o necessário, mais do que abrir a janela pela manhã e deixar a maresia entrar para corroer seus metais, apenas via o mar.

O mar parecia recuar um pouco mais a cada dia fugindo dos nativos e dos turistas. A sensação de que a faixa de areia se estendia ou que o número de banhistas aumentava. Uma janela aberta por onde observar e fazer considerações sobre a vida, por onde ver os traficantes sorrindo esperando aparecer no seu próximo filme. Tantas pessoas acreditando que ela era uma atriz. Um glamour que se perdera após a morte de Adalberto.

E nenhuma bala-perdida vinha acabar com a sua tristeza, com o silêncio.

Cogitava voltar para a vida antiga, trabalhar para ocupar o tempo, se ausentar um pouco do sol, da areia.

Ainda havia forças para trabalhar, se relacionar com as pessoas; já fizera antes! E naquela cidade era um bom lugar para recomeçar, para se relacionar com o tráfico, angariar clientes — ela falava inglês! Ser mais um daqueles que ela observava pela janela, carregar papelotes, fugir da polícia... Considerações.

Se Adalberto ainda estivesse vivo não pensaria em nada disso. Se o papagaio não pensasse que era capaz de voar depois de tantos anos atrofiado dentro da janela, não caísse do alto do décimo quinto andar, continuasse lhe dizendo bom-dia e cantando ilari-ilari-ilariê, fosse ainda sua razão de viver, alguém para alimentar com girassóis, ela não pensaria tanto em recuar.

Fabiano Rodrigues
Enviado por Fabiano Rodrigues em 25/04/2011
Código do texto: T2930068
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