Juqueri
Há várias vozes em todos os lugares, e há vários lugares em todos os cantos perdidos em cada olhar que se vaga pela rua. As vozes nos deixam surdos, nos cambaleia, nos deixa sem chão, desnorteados, vagando sem direção. As vozes mandam em nós, nós que não queremos escutar. Por que você me olha? O que você está pensando? Não vou olhar para você, não vou te escutar. Prefiro caminhar olhando o nada. Prefiro caminhar buscando o vazio. Cada espaço recortado pela dor é um ponto onde não queremos nos encontrar. Eu prefiro olhar para as árvores e você? Tapa os ouvidos quando a ouve? Não, não se quer enfrentar a realidade, quem a quer? Realidade esmagadora de sonho, realidade esmagadora da vontade, realidade comedora do ópio da verdade. O planeta gira em vão. Assim somos humanos na angústia e na saudade. Entender o que? Se nada existe?
Traga a panela Dona Marlene, traga a panela gigante que nunca pára de andar, traga a panela nesse instante. Dona Marlene pára e olha para fora de sua cozinha capaz de alimentar aqueles milhares de seres sem dor alguma mais, aquelas milhares de pessoas olhando o vazio, buscando uma voz. Quem sabe uma de consolo? Dona Marlene vislumbra o jardim selvagem que tenta invadir sua porta e leva para dentro a panela que anda sozinha. Nada pensa também, neste momento, além de terminar sua tarefa cotidiana de cozinhar para aquela massa vagante de gente. São toneladas de feijão, são toneladas de arroz, são toneladas de batata e de tomate que passam por suas mãos antes de se transformarem em uma substância apenas para manter os corpos daqueles seres sem nome, sobrenome, sem mais nenhuma alma. É certo que alguns rastejavam no chão como lagartos. Mas na vida não há aqueles que se rastejam por um pouco de pão? E aqueles que rastejam por um pouco de carinho? Um pouco de água e de vinho.
_ Já vai Dona Marlene?
_Já seu Toninho. Tenho que ir para a casa cuidar das minhas crianças. Dona Marlene tinha 15 netos morando com ela em uma casa cedida pelo hospital, enquanto a mãe de uma parte delas morava dentro dele. Como vó, ela sentia compaixão daqueles pequenos, como matriarca ela sentia obrigação de alimentar aquele bando de criança da mesma forma que alimentava aquele bando de seres vagantes. Dobrava o avental da cozinha que a sustentava, mas sabia que sua jornada não terminava por ali e parecia mesmo que sua vida fora apenas as bocas de um fogão. Quando não estava na cozinha do hospital, estava cozinhando em casa para os netos e seu lazer de fim de semana era cozinhar para seus irmãos e sobrinhos que não perdia a oportunidade de beliscar um almoço caprichado por suas mãos. E ainda, à noite sobrava-lhe tempo para mexer massa de coxinha para fora, como de bater massa de bala branca na pedra de mármore do balcão enorme. Loucura era pensar que aquela mulher que carregava aquelas panelas gigantes e que batia com tanta força a bala no mármore fosse capaz de apanhar de vez e sempre do marido, o qual também sempre bebia.
_ Já pegou suas coisas Dona Marlene?
_Já Seu Toninho. Falou meio tímida, enquanto escondia em suas sacolas as frutas, legumes e feijão que sobrara das toneladas que chegavam. Não tinha importância, são poucos frutas e legumes que se leva, não era realmente nada perto daquele desperdício de alimentos que se via todos os dias naquela cozinha, e, além disso, são quinze netos para cuidar e encher a barriga. Não é qualquer um que tem um montante desse de gente para sustentar, aí quem falasse alguma coisa quero ver se tem moral. Todo mundo leva coisa para casa aqui estão cansados de saber, o próprio diretor do hospital roubava mais do que todo mundo.
_ Quer levar leite seu Toninho?
_Obrigada Dona Marlene, estou realmente precisando... A senhora não teria aí uns ovos não?
_Claro, tenho sim, pode levar, aqui é de todos...
Aqui é de todos... Assim era o hospital do Juqueri, um verdadeiro hospício diga se de passagem, mas um hospital aberto a qualquer um que queira se candidatar a louco. Nunca fechou as portas para ninguém e esteve ao longo de um século, disposto a socorrer e a abrigar uma loucura que seja. O mundo gira e eu também enquanto a vida lá dentro se transformava em um camboio sem rodas, uma roda gigante parada, um feixe luminoso, uma fotografia antiga e rasgada, carcomida pelo tempo. O tempo não existia lá dentro. Não pode haver tempo em um lugar onde não há mais pessoas, mas sim vagantes como almas penadas a buscar suas sombras. Nem as sombras existiam mais por dentro daqueles muros fechados. Muros de concreto armado projetados pelo arquiteto romântico e poeta Ramos de Azevedo, mas que nunca deixaram de ser mais do que muros – fechados.
Haveria diferença entre os muros do hospital e os muros da rua? Os muros do hospital pareciam dividir a razão da loucura, a vida da morte, os bons e os maus, os aceitos e os não aceitos, os são e os loucos, a luz e a sombra. A família da Dona Marlene, os Merolatos, se consideravam livres e salvos porque estavam para fora do muro embora morassem e vivessem todos do hospital. Não importava se a mãe daqueles meninos estivesse lá, Você já viu os olhos daqueles doentes quando punham os pés para fora? Sempre havia um resto de luz no fundo de seus olhos já sem capacidade para enxergar além daqueles muros. Qualquer coisa que lembrasse um pouco de brilho, um pouco da dor já esquecida. Alguns pedem pelo amor de deus, outros um pouco de reza e outros gritam para o além mundo. Nunca se esqueça de escutar os muros, nunca se esqueça de escutar a voz que te entorpece no escuro. Seus portões de ferro, seus cadeados, seu passado atrás do concreto. Nunca se esqueça de escutar os muros antes que eles se fechem completamente.
Você já visitou o Juqueri? O Juqueri, nome de um rio que era tão puro, fluente do Tietê, deu nome para um hospital que saiu da imaginação de um médico chamado Franco da Rocha, meio cientista e meio poeta e que se transformou em um dos maiores hospitais psiquiátricos da América Latina. Para chegar ao Juqueri primeiro você tem que chegar a Franco da Rocha, já que, este não tem acesso a rodovias. É melhor você pegar o trem que sai da Estação da Luz em São Paulo em direção a Estação Franscisco Morato. Um trem velho, lataria esfolada pelo tempo de um chão sujo e janelas semi-abertas, portas escancaradas. As pessoas entram aos supetões e solavancos, usam os cotovelos e todo corpo para se colocarem na frente e alcançarem um banco. Não importa se é criança, idoso, deficiente a meta é chegar ao banco, custe a cabeça de quem seja. Vá preparado para a luta. Não espere sentar. E depois de 45 minutos aproximadamente olhe para o seu lado direito e você verá à beira do rio Juqueri e entre muito verde uma porção de prédios antigos e velhos, mas de um desenho romântico. Ali está o hospital.
_Estação do Juqueri, quem é louco desce aqui. Gritava o alto falante do trem quando não existia Franco da Rocha, a cidade, mas sim quando ainda existia o médico.
_Estação Franco da Rocha, desembarque do lado direito do trem, ao sair verifique o espaço entre o trem e a plataforma. As pessoas saem em disparada com medo de ficarem para trás. Há uma sensação constante de perda no ar, como se não pudéssemos ali nunca mais nos encontrar, ou como se pudéssemos ali parar eternamente estátuas do invisível.
Em seguida, vá por uma avenida reta cheia de coqueiros e lá na frente você verá, após a ponte sobre o rio com o mesmo nome e um arco, uma guarita com uma porteira, velha, diga-se de passagem.
_ Boa tarde! O que deseja? Olhou para mim um senhor com os olhos fundos, esverdeados, cara pálida, rosto magro, cabelos em desalinho.
_Boa tarde! Posso visitar o hospital? Ele nada fala, apenas acena com a cabeça. Volta para dentro da guarita e desaparece como um arrepio. Você entra por um caminho respirando sombras, um caminho em uma curva toda feita de paralelepípedo, pedras toscas colocadas a fio sem lembrança de algum passo. Enormes árvores compõem o espaço, e se encontram perante a curva, formam um túnel sereno e vasto que se desmancha ao andar a rua. Há flores em todas as calçadas, há folhas secas caídas na terra mescla de violeta com um tom marrom apodrecido. Luzes solares permeiam as copas e nos chegam devagar bem de mansinho como uma carícia de uma música. Não se pode andar depressa nesse caminho, é preciso estar atento ao ar melancólico e bucólico que paira pela atmosfera. Ternura e dor se misturam nas impressões que se seguem. Paisagem onde não existe vento nem passagem, apenas pensamento e miragem. Soluços nos chegam em tempestades de medo. Solidão.
Uma louca sozinha na rua, uma louca desce a rua com sua bata uniformizada bege e seu cabelo ralo, braços em movimento turvos, uma mulher sem calcinha, sem vaidade sem alguma coisa que marque mulher. Olha para trás e espera, anda, põe a mão na cabeça, olha para trás e espera alguma coisa acontecer, alguma coisa aparecer, algum funcionário a buscar. Como ninguém lembra que ela existe, a louca vai andando e parando e olhando para trás, andando e parando e olhando para trás. Ela perde o medo dos muros, ela perde o medo do escuro, ela perde o medo das sombras e das luzes que a pincelam entre as copas. Perde o medo da cara pálida, dos olhos fundos e do rosto magro. Perde o medo da ponte e se vai... Além dos morros e do horizonte, além do rio e além do mar. Para onde? Até hoje ninguém soube explicar. Mas uma louca se foi, escapou, enquanto eu tentava entrar. Assim, simplesmente, olhando para frente e olhando para trás. Sumindo por entre o trânsito maluco cheio de barulho, sirene e luzes fortes. A louca se descobre mulher ao querer andar.
Nunca mais a vi, desde o princípio, a grama cobre todo o campo aberto fora dos muros. Uma grama alta, mas simpática, de singela delicadeza, cor verde esmeralda, porém toda recortada, sem acabamento há muitos anos. Velhos pinheiros chorões compõem isolados, de uma largura muito extensa, a desolação do cenário que nos assola naquele momento. Certo repúdio assombra ao meu lado misturado com uma sensação muito forte de desobediência. Não deveria incomodar minha vó, ela deveria estar trabalhando uma hora dessas. Não deveria estar no Juqueri, nunca deveria entrá-lo. Lá não é lugar de gente e nem de criança. Agora já está tarde. Prendem os doentes em muros com jardins tão bonitos para fora deles... Antigo, é verdade, mal cuidado, é verdade, com árvores e ramos que não dão mais flores; uma quaresmeira raquítica, um cedro sem folhas, uma primavera quase morta. Mas ainda sim um jardim com árvores centenárias, troncudas e fortes que agüentam todas as lágrimas. Choram também. Enquanto isso, folhas grandes se acumulam na terra, uma a uma como gotas. Respiração, ar em movimento, som. Preciso ouvir ao longe se encontro alguém. Nada e ninguém se enxergam em seus campos. Como-se tanta beleza sem olhar apodrecesse sem espanto.
Feixes de luzes do sol insistem em zunir e me perseguem. São cores líricas em busca de uma sombra. Acaso encontrei a entrada. Um maravilhoso castelo desenhado de amarelo, com uma escadaria muito alta e larga para as grandes majestades. Você vai subindo devagar e segurando no pilar enquanto se deslumbra com aquele monumento. Estátua da arquitetura que antes de construir fora um simples desenho de um louco que não chegou a morá-la. Pois quem não é? Os poetas sempre foram e ninguém julga ao contrário. Mundo da lua vive na lua, fora do ar, paira distante da realidade, os poetas... Gente vagabunda, gente que não tem o que fazer gente que não gosta de trabalhar! Arte para quê? Arte para quem? Se não há quem escutar, quem ler, quem vê, quem olhar? Arte dá trabalho, mas não dá emprego. Talvez por isso, muitos artistas foram morar lá, no Juqueri. Fora da realidade, fora da verdade absoluta que enlouquece sem você perceber, fora da sociedade perdida. Uma sociedade só de loucos assim era para ser um mundo feliz, mas não, o Juqueri era prova de toda a pervecidade humana. Começava pelo Jardim que dentro dele existia tão lindo, mas não para os internos que nem passear embaixo de suas árvores troncudas podiam. Ao não alguns poucos escolhidos, loucos mais normais, mais vividos. Ao não ser também que fugissem. O castelo central também não podiam freqüentar.
(livro em construção)