Copacabana
Imaginavam naquele momento todas as dívidas, os amores não correspondidos, as decepções com os amigos, o salário baixo e a saúde comprometida espocados e desintegrados juntos aos fogos que anunciavam um novo ano, e ela também.
Ela se vestia de branco impreterivelmente, as peças íntimas cor de rosa, pois sempre sonhava com um amor verdadeiro, há muito estava cansada dos encontros fortuitos , do sexo fácil e pouco prazeroso. Estava muito bonita com o vestido branco em apliques de rendas e acessórios prateados. Pele branca, cabelos negros e longos que se contrastavam com um batom vermelho carmim.
Chegara à praia quando os terreiros da cidade preparavam uma festa para Iemanjá, muitas rosas brancas e velas sendo oferecidas à entidade, além de uma infinidade de cânticos em sua homenagem.
Era uma mulher exigente consigo, mas eternamente negligente com as pessoas. Passava a mão em todos os defeitos alheios. Para ela não havia pessoas feias fisicamente, havia pessoas pobres, não existiam pessoas de má índole, apenas pessoas que não foram amadas o suficiente. Para o mundo ela sempre tinha uma justificativa cândida e amorosa. Todavia, era impiedosa consigo mesma, não gostava de ver suas pequenas rugas, quase imperceptíveis, nem muito menos se perdoava quando cometia algum equívoco em relação ao viver, ou quando fora enganada por alguém de maneira tão inocente. Ficava a sofrer durante muito tempo com as suas falhas.
Foi muito cobrada pela família, tinha que dar certo, havia que recompensar todos os esforços dos seus pais em mantê-la, sempre, em bons colégios e depois numa universidade,curso de línguas e ainda ser uma cidadã do bem. E ela era.
Foi uma das melhores alunas de seu curso, mas quando saiu de lá formada, passou a enfrentar o dia a dia do trabalho com algumas dificuldades, pois percebeu que nem sempre os competentes estão à frente das hierarquias no mundo . Muitos estavam em altos postos, devido mais à convivência com as conveniências do que com o respaldo da competência e do trabalho sério e bem feito.
Ela era dona de uma grande competência, em tudo o que fazia. Mas pouco ousava quando o negócio era troca de favores. Muito certinha, jamais ousaria fazer dessas coisas. O que fazia pelo outro jamais cobrava por isso. Moral cristã absoluta e inconscientemente praticada.
Nos seus trinta anos, aquela mulher que muito prometia a si mesmo, quedava-se cansada com o ritmo frenético da vida e a falta de perspectiva do inusitado. A vida era sempre a mesma. Suas vinte e quatro horas do dia, foram bem programadas pelo tédio celestial. Simplesmente, sempre a mesmíssima coisa. Verdade que jogar a culpa de suas provações no Divino, talvez não fosse tão justo, mas ela pensava que justo não havia sido a invenção da humanidade, azar de deus, ele que se virasse! Ira cristã extravasada em noite de festa.
Algumas pessoas ao seu lado, na festa da praia, já caíam embriagadas pela alegria, pela tristeza ou pelo excesso de bebida. Para ela, essa festa era um momento de grande esperança de quem, já cansada, acreditava num conteúdo mágico e inovador à sua vida, como um príncipe encantado ou uma varinha de condão. Momentos de alegria e confraternização sempre se faziam presentes ali na praia. Expectativa de novidade boa. Além de muita gente bonita de todo o mundo. E o contato com pessoas que nunca havia visto.
Observava a euforia das pessoas ao seu redor ,ali, imóvel, sentada nas areias frescas da praia, aguardando todos os acontecimentos. Era católica por herança familiar, mas sempre no final de ano, frequentava todos os credos, pois mais importante que a religião fosse para ela, era a probabilidade de dias melhores, e no seu entender, que a levava aos outros credos; quanto mais entidades, santos, gnomos, incensos, velas, orações, rezas e bruxas ao seu redor, melhor. Sentia-se mais protegida e fortalecida.
Saiu de casa deixando a ceia preparada, pouca quantidade, mas uma grande variedade de pratos e tudo de muito bom gosto. Ela tinha bom gosto. Normalmente, ela fazia esse jantar todos os anos, porque não raro encontrava os colegas de trabalho ou um e outro vizinho empolgados com a festa universal e os convidava para ceiar em sua casa. Lá, o seu apartamento era sempre uma passagem, normalmente, as pessoas comiam, agradeciam, elogiavam, mas permaneciam pouco tempo, sempre ávidas por outros compromissos ou pelo retorno ao calçadão e ela acabava por ficar só.
Neste ano percebeu, nunca foi convidada para os outros compromissos com tais colegas, para a continuação da festa em outros locais. Ficou ensimesmada com isso como não se deixou outrora. Por que seria? Bem, mas o novo ano está chegando para levar todos esses pensamentos, para bem longe ou para a inexistência, ou para canto algum, ou para se fazer presente, constante, na caminhada dela.
Na praia, as pessoas atingiam o ápice da alegria esperando a contagem regressiva para o nascimento de dois mil e alguns anos. Vários telões foram colocados na orla , para mostrar à população presente na praia e ao Brasil todos os bons acontecimentos, óbvio, e a alegria da festa.
O Copacabana Palace , como já é tradição, estava se derramando em lágrimas coloridas e ela estava em meio à multidão, como uma peça a mais compondo as estatísticas favoráveis dos organizadores do evento.
Dez...nove..oito...sete...seis...cinco...quatro...três...dois...um... FELIZ ANO NOVO!
A cada rojão lançado ao céu a colorir a alma das pessoas, esta mulher fechava os olhos e visualizava todos os reveses da vida indo com os fogos lançados, e os sonhos chegando com as cores dos mesmos .
Após o lançamento dos fogos, dos sorrisos e choros emocionados que ela encontrava a cada passo que dava nas areias superlotadas da praia , caminhava com dificuldades devido à grande quantidade de gente e devido a um litro da champanha que bebeu sozinha.
Percebeu, apesar de embriagada, que começava mais um ano do jeito que sempre foi outrora, sozinha. Enquanto uma multidão se abraçava uns aos outros, ela não sabia a quem direcionar seus braços tão carentes de afeto. Por vezes um sorriso tímido para algum desconhecido que era retribuído de maneira mais tímida ainda. Outras vezes um abraço embriagado de quem já nem mais sabia o que estava fazendo.
Foi para casa um tanto mais pensativa do que nunca e resolveu dividir a ceia que tinha preparado com os funcionários do prédio em que morava. Cada um recebeu o seu prato saboroso do ano e voltaram aos seus postos rapidamente, também mais sós do que nunca, não poderiam deixar suas funções por muito tempo, pois o número de assaltos aos prédios da orla triplicavam neste dia.
Ela comeu tudo o que podia e o que achava que não podia , bebeu mais um pouco da sua champanha predileta, ainda vendo a multidão pela sacada da janela.
Dormiu na preguiçosa que estava na sacada do seu apartamento. Acordou no dia seguinte com o peso das obrigações já do ano vindouro, e um ser latejante na cabeça.